Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Professor da Graduação e dos Programas de Pós-Graduação em Direito Stricto Sensu da Universidade Federal do Pará e do Centro Universitário do Pará – CESUPA. Procurador do Estado do Pará. Advogado e Diretor do Brasilcon. Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Consumo e Cidadania”.
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Bolsista CAPES – Código de Financiamento 001. Especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa “Consumo e Cidadania” (CNPq). Advogada.
O presente artigo possui o objetivo de analisar alguns dos graves efeitos da pandemia da Covid-19 nas relações consumeristas e laborais inseridas na estrutura estatal brasileira, que, atualmente, é assumidamente neoliberal, e que, em diversos aspectos, deixou os cidadãos desassistidos, senão mediante ampla pressão social. Há uma nova realidade em curso imposta pela pandemia, com novas tendências já se concretizando e se projetando para o futuro, a exemplo de um maior consumo pelas plataformas de consumo compartilhado, bem como a ampliação do trabalho remoto. Neste particular, cumpre ressaltar a importância da efetiva proteção da parte mais vulnerável das relações econômicas e produtivas, mormente os consumidores e trabalhadores. Como pergunta central do problema de pesquisa, questiona-se se é possível reconfigurar a realidade social, para melhor, dentro de um Estado Neoliberal, que possui um projeto que dificilmente coincide com os interesses dos cidadãos – vulneráveis se comparados ao mercado. O método da pesquisa foi o hipotético-dedutivo e a metodologia de pesquisa a qualitativa, de viés exploratório e transdisciplinar, suscitando-se as categorias do Direito do Consumidor, do Direito do Trabalho e no âmbito da Ciência Política que definem a atuação de um Estado Neoliberal. Também foram utilizados dados recentes sobre os impactos da pandemia em diversos setores. Conclui-se que não será possível alcançar uma nova realidade social senão por meio de uma reconfiguração da atuação estatal, buscando-se a compatibilização dos interesses dos cidadãos com as práticas econômicas, com vistas a uma sociedade mais solidária, inclusiva e preocupada com o meio ambiente.
This article aims to analyze some of the serious effects of the Covid-19 pandemic on consumer and labor relations within the Brazilian state structure, which is presently neoliberal, and which, in several aspects, has left citizens unassisted, except through broad pressure from civil society. There is a new reality underway imposed by the pandemic, with new trends already taking shape and projecting itself to the future, such as greater consumption by shared consumption platforms, as well as the expansion of remote work. In this regard, it is important to emphasize the importance of effective protection of the most vulnerable part of economic and productive relations, especially consumers and workers. As a central question of the research problem, it is questioned whether it is possible to reconfigure social reality, for the better, within a Neoliberal State, which has a project that rarely coincides with citizens’ interests – vulnerable if they are compared to the market. The research method was hypothetical-deductive and the research methodology was qualitative, with an exploratory and transdisciplinary bias, focusing on categories of Consumer Law, Labour Law and within the scope of Political Science that define the operation of a Neoliberal State. Recent data on the impacts of the pandemic in several sectors were also used. It can be concluded that it will not be possible to achieve a new social reality except through a reconfiguration of State policies, pursue to make citizens’ interests compatible with economics practices, for a more supportive, inclusive and worried with the environment.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Os efeitos do capitalismo neoliberal na pandemia da Covid-19; 2 A ausência de proteção ao consumidor na pandemia, o neossujeito e a precarização do trabalho; 3 As possíveis mudanças nas relações de trabalho e de consumo a partir da pandemia da Covid-19; Considerações finais; Referências.
O presente trabalho tem como objetivo analisar alguns efeitos da pandemia da Covid-19 nas relações consumeristas e laborais, na ótica do Estado brasileiro, que, atualmente, é assumidamente neoliberal e que, ao longo desta grave crise, em diversos momentos deixou os cidadãos desassistidos de seus direitos sociais e individuais mais básicos, como uma efetiva assistência à saúde; outros direitos, como o auxílio emergencial, foram obtidos somente mediante intensa pressão social.
Com o necessário isolamento social, novos hábitos de consumo e de trabalho surgiram, bem como novas reflexões sobre a apropriação dos recursos naturais pelos seres humanos, constituindo mudanças transitórias ou permanentes, com algumas tendências já se concretizando e se projetando para o futuro, a exemplo de um maior consumo pelas plataformas de consumo compartilhado, bem como a ampliação do trabalho remoto.
Ambas as figuras, trabalhador e consumidor, são as partes vulneráveis, respectivamente, nas relações de trabalho e de consumo, cujas vulnerabilidades foram ainda mais expostas durante o cenário pandêmico. Eis a importância de uma atuação estatal que harmonize estas relações com os interesses econômicos, em vez de suprimir os direitos dos que mais precisam de assistência em momentos de crise.
O Estado neoliberal se esforça para atender aos interesses da classe econômica dominante, abstendo-se de agir ou agindo positivamente para promover a concorrência no mercado, mas que acaba se estendendo para todos os níveis sociais, inclusive nas relações entre os próprios indivíduos, momento em que se observa o neossujeito.
Com o advento de uma crise sanitária, social e econômica sem precedentes, questiona-se: é possível reconfigurar a realidade social, para melhor, dentro de um Estado neoliberal, que possui um projeto que dificilmente coincide com os interesses dos cidadãos?
A metodologia utilizada foi a de pesquisa bibliográfica transdisciplinar, com a utilização de dados recentes sobre os impactos da pandemia em diversos setores.
O mundo inteiro tem presenciado os efeitos da crise sanitária global provocada pelo novo coronavírus – denominado como SARS-CoV-2 pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus, cuja doença dele decorrente foi taxada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como Covid-19, do inglês
Nos primeiros meses de 2020, foi possível notar o crescimento rápido e exponencial da doença pelo globo, alcançando, oficialmente, o
A pandemia da Covid-19 compeliu os cidadãos globais a adotarem medidas rígidas de higiene, utilização de máscaras de proteção facial e demais equipamentos de proteção individual, distanciamento e isolamento social, e, dentre os 24 países mais afetados pela pandemia, 83% adotaram o
Em seguimento, com o surgimento e alastramento da Covid-19, o sistema econômico capitalista neoliberal vigente tem sido colocado à prova mais uma vez, restando evidente a sua contribuição não apenas para a origem das infecções – retratando a apropriação do meio ambiente natural pelos seres humanos –, mas também em relação à rápida disseminação do vírus, tendo em vista o atual estágio da globalização.
O novo coronavírus é considerado um vírus mais forte e de fácil transmissão em relação a outros das últimas décadas – como o vírus H1N1, Ebola, SARS-CoV-1 etc. –, espalhando-se rapidamente pelo grande volume de circulação entre as pessoas ao redor do mundo que estava se operando diariamente, tanto por motivos laborais quanto de lazer, em razão das exigências típicas do modelo econômico capitalista.
Depois de alcançado o nível comunitário e global de contágio, a humanidade, que outrora estava habituada à irrestrita circulação transfronteiriça, de repente se viu em uma situação diametralmente oposta: a do necessário isolamento social, que levou milhões de pessoas a permanecerem dentro de suas residências, algumas sem previsão para sair, exceto para atividades extremamente necessárias – como adquirir alimentos e trabalhar, na hipótese das pessoas que não puderam e não podem trabalhar de maneira remota.
Com efeito, a pandemia da Covid-19 também possibilitou o questionamento, mais uma vez, sobre os impactos socioeconômicos do sistema econômico capitalista. Este sistema já foi questionado em outros momentos da história recente, a exemplo do período da “Grande Depressão”, de 1929, a crise do petróleo na década de 1970 e o
Curiosamente ou não, após essas crises, o capitalismo neoliberal conseguiu ressurgir ainda mais forte, devido à sua “capacidade de autofortalecimento” (
A crise sanitária mundial de 2020 que vem sendo enfrentada por inúmeros países, além de ter provocado uma severa recessão econômica e alargado as fronteiras da desigualdade social, abriu mais uma oportunidade de questionamento e reflexão acerca das bases do projeto neoliberal e a maneira pela qual este tem, nas últimas décadas, influenciado o mercado, a atuação do Estado, as relações envolvendo empresas, trabalhadores e consumidores, bem como a ligação dos próprios indivíduos entre si.
A lógica mercantil vai além, pois o neoliberalismo revela um “processo de mercantilização generalizada das relações sociais” (
Diferentemente do Estado liberal clássico, e longe de ser um consenso entre seus teóricos, na prática, o projeto político e econômico neoliberal assimila que o papel do Estado é de uma intervenção positiva, de modo que deve agir somente para criar e fomentar a concorrência em todos os setores da sociedade civil, garantir as liberdades individuais, proteger as propriedades privadas e corrigir as distorções mercadológicas que impeçam ou dificultem esta livre concorrência entre as empresas e entre os próprios indivíduos (
Portanto, já não há mais que falar em um Estado mínimo no sentido clássico, mas sim em um Estado que intervém somente quando necessário – não no sentido burocrático, e sim em favor do mercado, fiscalizando, punindo e implementando políticas regulatórias, por exemplo, no tocante aos trustes, monopólios e demais práticas anticoncorrenciais –, muito embora, na prática, não se possa evitar que ocorram (
Nesse sentido, ao considerar a concorrência como um elemento-chave para o mercado, para a sociedade civil e para a própria atuação do Estado – em âmbito doméstico e transnacional –, o neoliberalismo desencadeou um tecido social marcado por uma empresarialização e constante competição, não apenas entre o segmento empresarial, mas entre os próprios indivíduos.
Para
O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência.
Na mesma linha de raciocínio,
[...] uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio.
Harvey (2014, p. 12) também define que o papel do Estado neoliberal é o de “criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas”, partindo-se do pressuposto de que as desejadas liberdades individuais somente serão garantidas a partir da liberdade de mercado e de comércio, que devem ser fomentadas pelo Estado.
Todavia, na prática, o fato de Estado neoliberal não exercer um intervencionismo irrestrito, agindo tão somente para fomentar a livre concorrência e o livre comércio, acaba por atender, primordialmente, aos interesses da classe capitalista e às novas formas de acumulação do capital, em um cenário marcado pela financeirização da economia, não mais exclusivamente pela produção (
O Estado neoliberal acaba implementando e fomentando políticas públicas e programas que dão vazão aos ideais neoliberais, assumindo, muitas vezes, posturas contrárias às exercidas pelo outrora Estado de bem-estar social, não havendo interesse em investir em áreas como a assistência à saúde, educação, proteção ao meio ambiente, dentre outras (
Dessa forma, os cidadãos acabam ficando à míngua, o que se nota pelo aumento da desigualdade social, evidenciado a partir da concentração de renda e patrimônio pela elite econômica, à custa da restrição a direitos fundamentais que deveriam ser amplamente garantidos à coletividade.
Sobre o assunto,
Assim, analisando-se a atual postura do Poder Executivo Federal brasileiro, nota-se que há um projeto econômico e político de Estado neoliberal em pleno funcionamento, que se assumiu com mais clareza após o
A pandemia da Covid-19 revelou, a nível interno no País – mas também globalmente –, as diversas insuficiências estatais na promoção e no fomento às efetivas políticas de assistência pública e privada à saúde, uma vez que, tanto em um caso quanto no outro, as respostas foram ineficazes para este momento de crise, irradiando-se a problemática, em muitas situações, do Executivo federal para o estadual e o municipal.
Como exemplo dessa ineficácia, cita-se a insuficiência de testes em massa para a detecção do vírus e sua resposta imunológica, a negativa de atendimentos de urgência e emergência para os acometidos com a Covid-19, em especial durante o pico da pandemia, a insuficiência de leitos e de medicamentos (
Nos últimos anos, o discurso da liberdade econômica vem sendo defendido como justificava para a supressão de direitos dos consumidores, assim como a defesa da autorregulação do mercado havia ganhando espaço no debate político e acadêmico, mesmo numa perspectiva distorcida, para legitimar um maior distanciamento do Estado no cumprimento de suas metas e compromissos no âmbito da Política Nacional das Relações de Consumo.
Contudo, as diversas políticas neoliberais adotadas pela maior parte dos países capitalistas contemporâneos demonstraram insuficiência neste momento de crise, revelando falhas estruturais nesse modelo econômico excludente, a exemplo da teoria do livre mercado e da autorregulação do sistema econômico, que foi posta em cheque com a implosão de inúmeros segmentos do mercado, em especial a ineficácia do atual modelo privado de saúde para dar respostas rápidas em cenários de crise e os problemas gerados pelo incentivo da indústria farmacêutica a um consumo voltado para a medicalização, em vez da prevenção de doenças (
Neste particular, também há de se ressaltar o agravamento da vulnerabilidade dos consumidores brasileiros na medida em que, tão logo a pandemia foi anunciada e, junto dela, a necessidade de aquisição de itens de higiene, equipamentos de proteção individual e produtos de limpeza, diversos fornecedores passaram a praticar o dobro ou triplo, do preço normal de mercado, estabelecendo preços abusivos em descumprimento ao art. 39, IV, V e X, do Código de Defesa do Consumidor.
Portanto, outro desafio enfrentado durante e após a pandemia diz respeito à crise econômica mundial que tem se instaurado, sendo o Brasil também um dos mais atingidos. Alícia Bárcena, secretária executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), afirmou à
[...] se houver uma redução de 1,8% do produto interno bruto em toda a América Latina e Caribe por causa da doença, a taxa de desemprego na região poderá aumentar em dez pontos percentuais. Se o cenário for confirmado, o número de pessoas pobres da região vai subir dos atuais 185 milhões para 220 milhões [...]. O número de pessoas em extrema pobreza (sem recursos para a manutenção da capacidade de trabalho) subirá dos atuais 67,4 milhões para 90 milhões [...]. Em termos percentuais, o total de pobres pode chegar a 35% da população latino-americana e o total de extremamente pobres, a 14,5%.
Uma das consequências da crise econômica – mas não apenas dela – é o surgimento de uma crise social, com o agravamento da desigualdade, a exemplo dos dados supracitados, que expõem, também, o problema das classes sociais mais baixas que não puderam e não poderão cumprir as recomendações de higiene por problemas de infraestrutura como a ausência de saneamento básico e baixa ou nenhuma renda para aquisição de itens básicos de higiene e proteção pessoal – bem como demais itens de consumo –, revelando, para o período pós-pandemia, um possível aumento de opressões e preconceitos em face também destas classes, por questões sanitárias.
Da mesma forma, há um grande número de trabalhadores informais, autônomos e outros grupos hipervulneráveis, que vivem abaixo da linha da miséria e, em muitos casos, invisíveis ao Estado, que acabaram sendo abandonados à própria sorte nesse contexto de crise social e econômica, exigindo uma política assistencial imediata do Poder Público, para lhes garantir a subsistência básica, o que, após pressão social e do Congresso Nacional, impôs ao Governo Federal, de clara inclinação liberal, a obrigação de aprovar ajuda emergencial em pecúnia a uma parcela significativa da população através da
Da mesma forma, vários segmentos empresariais, muitos dos quais defensores do Estado mínimo, têm defendido políticas públicas de concessão de crédito em taxas de juros simbólicas e com grande carência de pagamento, sob o argumento de que os bancos privados, pelo incremento do risco de inadimplência, restringiram acesso ao crédito e elevaram os juros. Defende-se, também, a suspensão e, até mesmo, a revisão da carga tributária como apoio à continuidade da atividade econômica e manutenção de empregos, o que ensejou, inclusive, a edição das Medidas Provisórias nºs 927/2020 e
Nos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, observa-se um movimento claro das economias liberais no sentido de promover abrangente política de assistência social e econômica aos seus cidadãos e empresas, mesmo que isso implique uma expressiva flexibilização de medidas de austeridade econômica e aumento do déficit público, como se observa na decisão histórica do Governo alemão (
Principal defensora da austeridade na Europa, a Alemanha vai abandonar sua política fiscal que garantiu seis anos consecutivos de superávit nas contas públicas, por causa da crise provocada pela pandemia do novo coronavírus. O governo vai aprovar um empréstimo de € 356 bilhões (cerca de R$ 2 trilhões) para financiar seus planos de socorro ao sistema de saúde e a empresas e trabalhadores afetados pela paralisação decorrente da pandemia.
Observa-se, como há muito não se via, uma grande dependência de tudo e de todos em relação ao Estado, como o único redentor dos graves problemas decorrentes da pandemia global, grande oportunidade para a transição de um capitalismo excludente para sua vertente mais social e inclusiva, pelo qual serão priorizadas políticas públicas para o reconhecimento e melhor tutela de grupos vulneráveis, assim como investimento público em serviços essenciais, seja quanto à execução, seja no âmbito da regulação das atividade empresarial, o que traz grandes benefícios ao consumidor.
Neste cenário pandêmico, o Estado neoliberal – em especial o brasileiro – revelou uma de suas facetas mais cruéis: a de colocar os interesses do mercado acima da vida e saúde dos cidadãos, buscando atender, em primeiro plano, às exigências do amplo segmento empresarial, o que restou evidente em discursos públicos como o da retomada imediata da economia, aliada ao negacionismo da gravidade da doença, que desincentivaram milhares de pessoas a praticar o isolamento social (
A retomada da economia e a preservação da saúde da população não deveriam conflitar entre si, pois ambas são pautas importantes. Neste particular, destaca-se que o Brasil já estava enfrentando uma recessão econômica severa nos últimos anos – a pandemia só fez agravá-la. Contudo, transferir o cuidado com a saúde dos cidadãos para o segundo plano e abandoná-los à própria sorte certamente não deveria fazer parte de nenhum projeto de governo. Não à toa, o Brasil figurou como um dos epicentros da pandemia durante meses.
No mesmo sentido, a partir da pandemia, os grandes empresários pleitearam a suspensão e revisão da carga tributária como apoio à continuidade da atividade econômica e à manutenção dos empregos, o que levou à edição das Medidas Provisórias nºs 927/2020, 936/2020 e 930/2020 – as primeiras, principalmente, com forte intervenção na legislação trabalhista, restringindo direitos dos trabalhadores.
Apesar de a
Até mesmo em países como Estados Unidos e outros pertencentes ao bloco econômico e político da União Europeia, no qual, em sua maioria, as economias neoliberais dão o tom das políticas públicas, observou-se, durante a pandemia, um movimento claro de promoção de políticas assistencialistas às empresas e aos trabalhadores. Na Alemanha, por exemplo, a crise sanitária provocou o afastamento, ainda que temporário, das políticas de austeridade, após seis anos consecutivos de superávits (
Voltando ao cenário brasileiro, não houve uma implementação genuína de políticas assistencialistas desde o surgimento da pandemia da Covid-19 no País, senão mediante extrema pressão social, que gerou tão somente o auxílio emergencial no valor de seiscentos reais – com polêmicas sobre as milhares de fraudes sobre o recebimento indevido deste valor por muitas pessoas mal intencionadas (
Por outro lado, também se pôde observar a prática de preços abusivos, por diversas empresas, sobre os itens de higiene e limpeza e equipamentos de proteção individual, tão procurados pelos consumidores nos últimos meses por serem itens essenciais no combate ao novo coronavírus, em claro descumprimento ao art. 39, IV, V e X, da Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), agravando a vulnerabilidade dos consumidores.
Nota-se, pois, a grave falha do Estado brasileiro quanto ao papel que deveria assumir diante do compromisso com a Política Nacional das Relações de Consumo no contexto da pandemia da Covid-19. Cita-se, em especial, o descumprimento a diversos incisos do art. 4º da Lei nº 8.078/1990. Isto ficou nítido com inúmeras situações que implicaram uma maior desarmonia das relações de consumo, principalmente sobre os bens e serviços essenciais para a saúde e bem-estar dos consumidores durante a pandemia.
Nessa linha de raciocínio,
[...] concebida com a finalidade de disciplinar o comportamento do Estado como grande mediador de interesses contrapostos da sociedade de consumo e dos agentes do mercado, concretizando o princípio da harmonia das relações de consumo de relevo constitucional pela compatibilização da livre iniciativa e da proteção do consumidor como pilares da ordem econômica, nos termos do artigo 170,
É exatamente o contrário do que tem ocorrido na prática, uma vez que o Estado brasileiro, pretendendo-se neoliberal na economia, costuma conceder um enfoque maior ao atendimento dos interesses da elite econômica, tornando os consumidores ainda mais vulneráveis, havendo um desequilíbrio maior nas relações de consumo em nome de uma ampla e irrestrita concorrência que, neste cenário, revelou-se insuficiente para oferecer produtos e serviços de qualidade e com preços justos aos consumidores em um momento tão delicado.
Neste ponto, questiona-se: no contexto brasileiro, a quem tem servido a proclamada concorrência neoliberal? Diferentemente, o Estado brasileiro deveria agir em cumprimento à Política Nacional das Relações de Consumo, a fim de promover um debate político permanente e qualificado com fornecedores e consumidores e, consequentemente, a transição de políticas públicas excludentes para medidas econômicas e políticas mais sociais e inclusivas, priorizando-se as ações voltadas para a melhor tutela dos grupos vulneráveis, bem como o investimento público em serviços essenciais, dentre eles a saúde, bem como a regulação das atividades empresariais nesse sentido, o que traria grandes benefícios aos consumidores (
A pandemia da Covid-19 prejudicou ainda mais os grupos socialmente hipervulneráveis, como as mulheres, os trabalhadores informais, as populações de rua, os moradores de favelas, os refugiados e imigrantes indocumentados, as pessoas com deficiência, os idosos, dentre outros, segundo a reflexão feita por Boaventura de Souza
Muitos destes grupos já estavam, há muito, invisíveis ao Estado. Neste cenário de crise social e econômica, foram praticamente abandonados à própria sorte. Especialmente no Brasil, notou-se a necessidade de uma política assistencial imediata do Poder Público para a garantia da subsistência social básica, o que foi providenciado somente após uma intensa pressão social e do Congresso Nacional, fazendo com que o Governo Federal aprovasse o auxílio emergencial em pecúnia por meio da Medida Provisória nº 935/2020, que já teve sua vigência encerrada, como informado alhures.
Além de serem grupos invisíveis ao Estado, também o são, muitas vezes, invisíveis à lógica do mercado e, por que não dizer, na relação dos próprios indivíduos entre si, com a marcação de profundas desigualdades sociais. Essas desigualdades puderam ser notadas, ao longo da pandemia, na medida em que, de um lado, havia o grupo de indivíduos que conseguiram praticar o isolamento social, exercer o trabalho remoto e acesso satisfatório à
Do outro lado, há os indivíduos que não possuem sequer condições de adquirir os itens de higiene mais básicos, tampouco gozam da cobertura de saneamento básico, além de não terem o privilégio de praticar o trabalho remoto. Neste aspecto, voltou à tona, por exemplo, a discussão acerca da renda básica universal (
Em um cenário de pandemia, proteger o consumidor é lhe possibilitar condições de acesso aos itens de higiene e equipamentos de proteção individual sem que este tenha que se submeter ao superfaturamento praticado pelos segmentos responsáveis pela produção de bens e serviços essenciais, conforme tem sido veiculado pela grande mídia.
Só no Estado de São Paulo, por exemplo, ainda nos primeiros meses da pandemia, o Procon/SP já havia multado estabelecimentos comerciais por práticas abusivas e desconformidades com o Código de Defesa do Consumidor com multas que ultrapassaram três milhões de reais (
Para além disso, também se observou que a inserção dos consumidores no ambiente digital não se opera de forma igualitária, restringindo o acesso de muitos à
Os consumidores que não possuem tais condições tendem a sofrer opressões e preconceitos.
donos de recursos demasiado escassos para reagirem de forma adequada aos “apelos” dos mercados de bens de consumo, ou mais exatamente a seus passes sedutores, são pessoas “desnecessárias” para a sociedade de consumidores, que estaria melhor sem elas. Numa sociedade que avalia seu sucesso ou fracasso pelas estatísticas do PIB (ou seja, a soma total de dinheiro que troca de mãos nas transações de compra e venda), esses consumidores deficientes e defeituosos são descartados por serem perigosos.
Na teoria, o Estado neoliberal deveria se pautar em atos de privatização, desregulação e competição, com a eliminação da burocracia, a ampliação da eficiência e da produtividade, a fim de elevar a qualidade e reduzir os custos dos produtos e serviços, favorecendo, em tese, o destinatário final, que é o consumidor, bem como reduzindo a carga tributária. No entanto, na prática, a proteção dos consumidores acaba ficando em segundo plano, não havendo outra alternativa para estes senão a de formação de laços de solidariedade social para resguardar seus direitos básicos (
A dificuldade reside na formação destes laços, considerando-se o clima competitivo estimulado pelo neoliberalismo não apenas no mercado, mas também entre os próprios indivíduos em suas vidas profissionais e pessoais. O capitalismo neoliberal já estava sendo, décadas antes da pandemia ora vivenciada, um dos grandes responsáveis pela modelação de uma nova sociedade, por isso
Dentro desta sociedade neoliberal, o indivíduo é considerado o empreendedor de si mesmo, o “homem-empresa”, o “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou mesmo “neossujeito” (
O sujeito neoliberal é intrinsecamente competitivo, não mais com o enfoque apenas no aspecto produtivo da era industrial. A lógica concorrencial da empresa e do mercado torna-se, agora, uma lógica subjetiva do modo de condução individual da vida. O neossujeito se preocupa em uma dedicação integral a qualquer atividade que desempenhe em sociedade, em especial no seu emprego, como se dependesse disso a sua vida (
O grande problema de o indivíduo ser um empreendedor de si mesmo reside na responsabilidade individual pelos seus fracassos. Ao tratar sobre esta sociedade marcada pela individualização,
[...] se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para encontrar trabalho ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; [...].
Esta responsabilidade individual se dá pelo esfacelamento da rede de seguridade social, reduzindo os recursos que deveriam ser destinados ao bem-estar social, dentre eles o direito à saúde, à educação, à previdência social, dentre outros. Para
Em uma sociedade neoliberal, há uma ampliação da desigualdade social a partir da restauração do poder da classe dominante, que é a elite econômica. O neoliberalismo já havia dado sinais, muito antes da pandemia, sobre o abismo da desigualdade social que estava se instalando em diversos países desde meados dos anos 1970 (
Portanto, durante a pandemia da Covid-19, o Estado brasileiro revelou inúmeras escusas à garantia de direitos fundamentais, sendo a saúde um deles, que deveria ter sido efetivada diretamente, por meio da garantia de uma saúde pública de qualidade, ou indiretamente, por meio da mediação qualificada dos interesses dos fornecedores de planos de saúde privados e dos consumidores, visando à harmonia das relações de consumo nesse sentido (
Não apenas os consumidores foram afetados no Brasil, como também os trabalhadores, que, aliás, já vinham sofrendo um desmantelamento de direitos nos últimos anos, por meio da Lei nº 13.467/2017, que instituiu a reforma trabalhista. Além deste diploma legal, durante a pandemia, o governo federal editou as Medidas Provisórias nºs 927/2020, 936/2020 – que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda – e 930/2020 – as primeiras, principalmente, restringiram inúmeros direitos do trabalhador, sob o prisma da manutenção dos empregos.
A MP 927/2020 já teve a sua vigência encerrada; a MP 936/2020 foi convertida na
Analisando-se tal Programa quando ainda estava em vigor sob a Medida Provisória nº 936/2020, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstraram preocupação com o valor do benefício emergencial concedido aos trabalhadores que aderirem ao Programa em relação ao poder de compra. Dados analisados indicam que alguns trabalhadores podem ser mais impactados do que outros, por adesão ao referido Programa, variando desde as pequenas perdas nos rendimentos, até a suspensão do contrato de trabalho, que impacta mais. Apesar disso, a Nota Técnica esboçou que o referido Programa seria importante para a manutenção do emprego e da renda, como o próprio nome assinala (
Contudo, ainda que se fale em manutenção do emprego e da renda, esta se dará à custa de reduções salariais ou de suspensão do contrato de trabalho, sendo possível perceber que o trabalhador é grandemente afetado em um momento de crise quando não há uma política mais ampla de proteção a este. Conquanto se reconheça a importância do benefício assistencial neste contexto de agravamento da crise, a redução de direitos tende a fragilizar ainda mais a já combalida posição social e econômica do trabalhador.
Ainda com relação aos efeitos trabalhistas da pandemia, alguns pontos merecem destaque, sobretudo se consideramos a mais expressiva transição laboral da história, como a maior precarização do trabalho a partir do aumento do emprego informal – consequência da crise econômica que já estava instaurada no Brasil desde meados de 2013, restrição de direitos a pretexto de se preservar o emprego, exposição maior ao trabalho penoso, degradante, e prestado sem as condições mínimas de segurança num contexto mais grave de pandemia.
De modo a ilustrar essa realidade, observam-se as plataformas de consumo compartilhado que já haviam se estabelecido no país antes da crise, principalmente em relação aos aplicativos de
O isolamento social, por sua vez, trouxe a reboque o aumento do consumo a distância, por meio do comércio eletrônico, principalmente, dos aplicativos de entrega em domicílio, como restaurantes, bares, livrarias, cafeterias, lojas de departamentos etc., o que envolvia não apenas o grande fornecedor, mas também o pequeno comerciante e o empreendedor local.
Houve muitas campanhas publicitárias de estímulo ao comércio eletrônico realizadas pela
A hiperconectividade do consumidor o levou à hiperconfiança, associada ao pouco controle governamental e quase nenhuma responsabilidade das plataformas – estavam criadas, assim, as condições ideais para o surgimento de uma nova espécie de vulnerabilidade no consumidor: a vulnerabilidade situacional, fruto das promessas não cumpridas no processo de mudança daquele consumo analógico, agora transformado, quase que compulsivamente, em consumo digital, seja para o bem, seja para o mal.
Da mesma forma, aquele indivíduo que há muito não conseguia espaço no mercado formal viu nas plataformas virtuais uma oportunidade de garantir sua subsistência, naquela lógica de que seja o “empreendedor de si mesmo”.
Muitos se arriscaram no comércio eletrônico, abrindo pequenas empresas atraídas pela pseudodemocratização da concorrência na internet, mas foram rapidamente expostas à dura realidade das cláusulas abusivas, das promoções agressivas, do assédio para o pagamento de comissões elevadas para terem algum destaque publicitário ou da simples oferta de seus produtos e serviços dentro da plataforma de entrega, como nos casos apontados por pequenos comerciantes outrora vinculados ao
Como apps de entrega estão levando pequenos restaurantes à falência. 49 anos, Ricardo Masironi desistiu de empreender. Desde novembro, o ex-dono de hamburgueria se tornou cozinheiro de uma cervejaria artesanal em Moema, zona sul de São Paulo. Masironi havia criado a Montanha Burger em 2016 e viu a chance de prosperar a partir do serviço de entrega de comida iFood, que estava expandindo as suas operações na mesma época. Foi uma decisão acertada: com “propaganda” garantida por parte do parceiro de delivery, a Montanha Burger, que tinha um pequeno salão próximo ao metrô São Judas, também na zona sul da capital, chegou a despachar 90 entregas por dia, metade da sua demanda diária, com uma média de R$ 55 por pedido. Nada mau para um negócio de pequeno porte. Mas, no começo de 2019, algo começou a dar errado: os pedidos deixaram de aparecer de uma hora para outra. Não foi uma redução gradual, fruto de um possível aumento de competição. Nem uma mudança de cardápio ou receita, que permaneceram exatamente os mesmos. Masironi sequer teve a chance de sondar a clientela para saber o que estava acontecendo: no final de 2018, o iFood já havia deixado de fornecer o contato dos clientes aos restaurantes. A partir de então, o consumidor passou a ser do serviço de entrega – não importa quem faça a comida. “Com o tempo, o iFood mudou radicalmente o atendimento aos restaurantes”, diz Masironi, que acabou fechando o salão em agosto do ano passado. Manteve apenas o
Muitos outros se expuseram, por necessidade extrema e falta de opção, a realizar a árdua tarefa de entregadores, cujo trabalho excessivo e penoso se agravou durante esse período de confinamento social, expondo-os a riscos muito maiores de contaminação pelo coronavírus, sobretudo porque sequer receberam materiais e equipamentos de proteção individual e, por serem autônomos, não recebem qualquer suporte ou assistência da empresa se contaminados.
Em resumo, o mito do “empreendedor de si mesmo” foi escancarado pela pandemia e reflete as consequências da precarização do trabalho e da falta de regulação estatal no exercício das novas plataformas virtuais, o que repercute, necessariamente, no mau atendimento do consumidor.
Outras consequências sociais da crise também são esperadas, como demissões em massa e/ou redução de inúmeros direitos trabalhistas outrora conquistados, sob o pretexto do medo de inúmeros trabalhadores (
Como referido acima, duas medidas provisórias foram aprovadas nos últimos meses com a pretensa justificativa de preservar o emprego e dar algum suporte econômico às empresas durante à pandemia, a saber: MP 927/2020, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) e a MP 930/2020, por meio da qual se previu a) redução proporcional de jornada de trabalho e salário, b) suspensão temporária do contrato de trabalho e c) pagamento de benefício emergencial de manutenção do emprego e da renda, inclusive, em decorrência da redução de salários e suspensões de contratos de trabalho.
Conquanto se reconheça a importância do benefício assistencial nesse contexto de agravamento da crise, a redução de direitos tende a fragilizar ainda mais a já combalida posição social e econômica do trabalhador.
Outrossim, também se percebe o expressivo aumento do teletrabalho –
Na mesma toada, quando se fala em relações laborais na fase mais recente do capitalismo neoliberal, já se observava, antes mesmo da pandemia, o fenômeno da precarização do trabalho – bem como a “uberização” das relações trabalhistas, também como decorrência da crise econômica que havia sido instaurada no Brasil desde meados de 2014 e o aumento do emprego informal, restrição de direitos –, a pretexto de se preservar o emprego –, exposição maior ao trabalho penoso, degradante, e prestado sem as condições mínimas de segurança.
Porém, com o advento da pandemia da Covid-19, os indivíduos que há muito não conseguiam espaço no mercado formal de trabalho visualizaram nas plataformas virtuais uma oportunidade de garantir sua subsistência, na lógica do “empreendedor de si mesmo” a que se referem
Isso se refletiu, no Brasil, na greve dos entregadores de aplicativos, o chamado “Breque dos Apps”, realizado em julho de 2020. Dentre as reivindicações, estavam: “Aumento nas taxas de entrega, aumento da taxa mínima, fim dos bloqueios indevidos, seguro para roubos e acidentes, licenças pagas para entregadores infectados na pandemia e distribuição de EPIs” (
Em suma, a pandemia despertou para o fato de que a idealização do “empreendedor de si mesmo” não passa de um mito, que carrega, por trás, a precarização do trabalho e a falta de regulação estatal no exercício das novas plataformas virtuais, repercutindo, necessariamente, no mau atendimento do consumidor.
Outras consequências sociais da crise econômica intensificada pela pandemia também estão sendo sentidas, como demissões em massa e/ou redução de inúmeros direitos trabalhistas outrora conquistados, sob o pretexto do medo da demissão por parte dos trabalhadores.
Soma-se a isto o aumento da adesão dos consumidores à utilização das plataformas de consumo compartilhado devido ao necessário isolamento social – a exemplo dos aplicativos de
Nesse contexto, tem-se a hiperconectividade do consumidor, que o levou à hiperconfiança nestas plataformas compartilhadas, e, com o pouco controle governamental e nenhuma responsabilidade por parte das plataformas, proporcionou as condições ideais para o surgimento de uma nova faceta da vulnerabilidade no consumidor: a vulnerabilidade situacional (
Outrossim, como consequência da crise sanitária e o agravamento da crise econômica, bem como com a ampliação do uso das diversas tecnologias, também se percebe o expressivo aumento do teletrabalho –
O mesmo pode ser adotado por diversas instituições de ensino, havendo uma forte tendência de ampliação da modalidade de ensino a distância (EAD), impactando não apenas os alunos, enquanto consumidores, mas também os professores, enquanto trabalhadores, comprometendo a relevância destes últimos, bem como o comprometimento da tão importante interação social entre os alunos, repercutindo, quem sabe, negativamente na qualidade dos cursos superiores no País, pela introdução de novos projetos pedagógicos com vieses que podem ser mais mercadológicos do que educacionais, em relação ao setor privado de ensino.
Ainda sobre o ensino a distância, tanto para crianças quanto para jovens e adultos, e tanto na perspectiva discente quanto docente, é preciso pensar nas desigualdades sociais que, muitas vezes, impedem o acesso à educação informatizada. Neste particular, “uma estratégia consistente para o ensino a distância é aquela que busca mitigar as condições heterogêneas de acesso e os diferentes efeitos de soluções a distância em função do desempenho prévio dos estudantes” (
Tratar-se-á sobre estes últimos pontos no terceiro e último tópico deste trabalho.
A pandemia da Covid-19 impôs inúmeras mudanças no modo de trabalhar e consumir, em razão do necessário isolamento social e novos hábitos formados a partir de práticas severas de higiene. Contudo, mesmo após o relaxamento de diversas medidas de prevenção ao vírus – como a reabertura de estabelecimentos –, muitas destas mudanças tendem a permanecer no meio social, dentro do que se convencionou chamar de um “novo normal”.
Isto é, inseridos em uma sociedade líquida, os indivíduos tendem a consumir em um ritmo veloz, e em grande quantidade, tendo em vista que o objetivo do mercado de consumo não é satisfazer, efetivamente, as necessidades dos consumidores, mas sim de gerar novas necessidades, a fim de não permitir intervalos extensos de tempo entre uma compra e outra (
[...] as economias capitalistas contemporâneas são 70 ou 80% impulsionadas pelo consumismo. A confiança e o sentimento dos consumidores tornou-se, nos últimos quarenta anos, a chave para a mobilização de uma demanda efetiva e o capital tornou-se cada vez mais orientado pela procura e pelas necessidades.
Neste momento, especialmente no Brasil, as prioridades de consumo estão sendo revistas, primeiro pela forma, com o aumento do consumo eletrônico pela via do
Nesse sentido, boa parte destas mudanças se iniciaram a partir de uma maior reflexão feita pelos indivíduos, acerca, por exemplo, desta cultura de consumismo em que todos se encontram inseridos, bem como da exploração exacerbada do meio ambiente, sendo alguns dos fatores que estão levando à destruição do meio ambiente natural ao redor do mundo, com as irrefreadas viagens a trabalho ou turísticas, a utilização de meios de transporte emissores de dióxido de carbono e dióxido de nitrogênio a partir da queima dos combustíveis fósseis, dentre outros (
Portanto, passou-se a refletir, em uma espécie de tentativa de reconfiguração da realidade social, sobre uma possível mudança na exploração dos recursos naturais, a fim de promover uma efetiva preservação do meio ambiente natural, uma vez que já se percebeu que esta exploração inadequada também foi um dos fatores que levaram à atual crise sanitária. Assim, ainda durante a pandemia, já foi possível notar a desvalorização econômica do petróleo e seus derivados, bem como uma comprovada melhoria no meio ambiente em diversos países durante o período em que mais se aderiu ao isolamento social (
Todavia, apesar de alguns especialistas projetarem como uma mudança permanente na forma pela qual os seres humanos se organizarão em sociedade, para fins de preservação da natureza, outros preveem que, na verdade, após a pandemia, tende a haver uma poluição ainda maior do meio ambiente, em razão de uma retomada acelerada da economia e das indústrias, para suprir o período do isolamento, bem como uma maior quantidade de lixo produzida durante o isolamento, com as pessoas consumindo mais alimentos, por exemplo. Enquanto uns entendem que foi uma melhoria temporária na qualidade do ar e da água, outros entendem que as melhorias poderão se estender para além do período pandêmico (
Em um Estado neoliberal, constantemente preocupado com a saúde econômica e as condições adequadas para o funcionamento do mercado, tal como ocorreu no
Ainda sobre a diminuição da utilização de combustíveis fósseis, o isolamento social também proporcionou uma redução na quantidade de viagens, tanto aéreas, quanto terrestres e aquáticas. Isto afetou o setor turístico de um modo geral, incluindo o hoteleiro, gastronômico e de lazer (
Ainda no tocante ao aumento da utilização das plataformas de videoconferências, reflete-se acerca de uma possível prática permanente do trabalho remoto – o
Nesta esteira, nota-se, ainda, o fortalecimento do comércio eletrônico, que já era amplamente utilizado por muitos consumidores desde as últimas décadas e, a partir da pandemia, passou a ser ainda mais, difundido, principalmente, pelas mídias sociais. Durante o mês de maio de 2020, por exemplo, constatou-se um crescimento de 126,9% no setor de comércio eletrônico brasileiro (
Com efeito, o Brasil se deparou com uma reconfiguração do modelo tradicional de varejo, pois, na medida em que o novo coronavírus foi se alastrando pelo País, as autoridades brasileiras determinaram o fechamento de
Seja pela mudança dos hábitos de consumo, seja pelo isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19, os fornecedores – de forma geral, abrangendo, inclusive, os pequenos empresários e aqueles mais resistentes à operação eletrônica dos serviços – precisaram se adaptar às novas condições do mercado e a um novo perfil de consumo, vendo como necessária uma efetiva presença digital na comercialização dos seus produtos e/ou serviços.
A questão é que, diante de tantas mudanças, nem todas trarão benefícios, como os decorrentes de um consumo mais consciente, mas também intensificarão malefícios sociais, como um processo ainda mais precarizador das relações de trabalho e uma ausência de proteção da privacidade, tanto de consumidores quanto de trabalhadores, inseridos em uma sociedade cada vez mais tecnológica e informacional.
Por oportuno,
A exposição da vida íntima, exteriorizada pelas novas tecnologias, tornou-se a matéria-prima mais importante para as grandes empresas de tecnologia – especialmente, mas não apenas, as quatro grandes:
Assim, os autores defendem a necessidade de uma regulação e controle por parte dos órgãos estatais, tendo em vista que a utilização abusiva destas tecnologias e, consequentemente, da apropriação indevida dos dados pessoais dos usuários ameaça as instituições democráticas, e que regular a utilização das tecnologias é mais democrático do que proibi-las (
Ainda neste aspecto, retoma-se o conceito de vulnerabilidade situa- cional dos consumidores, mencionado anteriormente no presente artigo. Na mesma linha de raciocínio,
Ainda com relação à desconstrução do já combalido modelo de varejo tradicional, caracterizado por grandes lojas físicas, estoques consideráveis e locação de espaços caros em áreas comerciais e
A recente pesquisa do IBGE, intitulada “Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas”, apontou que a pandemia fechou 39,4% de todas as empresas paralisadas, o que, numericamente, representa 522,7 mil empresas que encerram suas atividades, temporária ou definitivamente, até a primeira quinzena de junho de 2020, tendo sido os setores de serviços e o comércio como os mais afetados (
Nem mesmo as grandes lojas de departamento ficaram imunes à crise – mesmo aquelas que já possuíam uma razoável experiência com o comércio eletrônico, como foi o caso da Ricardo Eletro, que demitiu 3.500 empregados, fechou todas as lojas físicas e pediu recuperação judicial, mantendo apenas a plataforma virtual e os departamentos de logística e entrega (
Grande impacto também sofreram as multinacionais como a Inditex, maior varejista de roupas do mundo e proprietária das marcas Zara e Massimo Dutti, que sofreu seu primeiro prejuízo trimestral como empresa de capital aberto e anunciou o fechamento de 1.200 (mil e duzentas) lojas físicas, elevando a meta de vendas
As grandes redes que ainda resistem são obrigadas a diversificar suas atividades, investir numa abordagem publicitária mais agressiva e ainda concorrer com as fábricas que estão migrando para o varejo, por meio da venda direta ao consumidor em suas próprias plataformas.
Por exemplo, o Magazine Luiza comprou o
Sua intenção com a compra foi atingir o público que acessa o
Nessa lógica de diversificação, o Magazine Luiza também adquiriu a
Há, portanto, inegável movimento das fábricas e indústrias para criarem suas lojas virtuais, ou seja, expandem o negócio para a venda
Segundo pesquisa do Ibre/FGV, antes da pandemia, 6 em cada 10 empresas ouvidas afirmaram que as vendas
Em caminho diametralmente oposto, as ações da Amazon atingiram a máxima histórica, tendo a empresa se beneficiado da forte demanda em meio ao isolamento social, elevando o seu valor de mercado para US$ 1,14 trilhão. Com o crescimento das compras
Se a confiança e a renda do consumidor foram duramente comprometidas na grave crise econômica que veio a reboque da pandemia, a atual concorrência com as grandes plataformas
Os pequenos negócios foram os primeiros a perecer, e mesmo aqueles que já possuíam algum expertise no comércio eletrônico enfrentam dificuldades, ou se reposicionaram nesse espaço com margens de lucro cada vez menores, logística complexa, desafios tecnológicos, consumidores mais exigentes e crescente risco de irrelevância pela alta competitividade de um mercado virtual global, não mais sujeito a limites geográficos.
Resta evidente, portanto, que a pandemia da Covid-19 demarca um período de transformações nas relações de trabalho e consumo, algumas para melhor e outras para pior. De um lado, há uma oportunidade para a abertura de um novo caminho rumo a um consumo mais consciente e a uma sociedade mais solidária. Do outro lado, há uma sociedade ainda mais tecnológica, que precisa atentar para os perigos da utilização indevida das diversas tecnologias, que estão cada vez mais presentes nos lares dos consumidores e trabalhadores – estas pessoas, dentro de casa neste cenário pandêmico de isolamento social, se fundem em uma figura só, pois consomem e trabalham ao mesmo tempo.
Como garantir que as boas mudanças sejam permanentes, se o contexto é de um Estado neoliberal que serve muito mais às aspirações mercadológicas do que em atender aos interesses dos cidadãos? Como exigir das autoridades governamentais que se posicionem e defendam, a um só tempo, os trabalhadores, os consumidores – pois não há consumo sem trabalho e vice-versa – e os fornecedores, assumindo, efetivamente, o seu papel dentro da Política Nacional das Relações de Consumo e das disposições constitucionais pertinentes, que deveria compatibilizar a livre concorrência e a livre iniciativa com a proteção dos consumidores, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades e a garantia do pleno emprego aos cidadãos, conforme o art. 170, IV, V, VI, VII e VIII, da Constituição Federal de 1988?
A pandemia demonstrou, tal como
Em caso de conflito, o Estado neoliberal típico tende a ficar do lado do clima de negócios favorável em detrimento seja dos direitos (e da qualidade de vida) coletivos do trabalho, seja da capacidade de autorregeneração do ambiente. [...] em caso de conflito, os Estados neoliberais tipicamente favorecem a integridade do sistema financeiro e a solvência das instituições financeiras e não o bem estar da população ou a qualidade ambiental.
Em momentos de crise, os fornecedores recorrem à Administração Pública, buscando subsídios, reduções tributárias e de direitos trabalhistas, políticas de austeridade fiscal, dentre outros. O problema é que, conforme o trecho acima, no cenário de um Estado neoliberal, os últimos a serem socorridos costumam ser os cidadãos, e é assim que tem se observado, a um só tempo, consumidores e trabalhadores verdadeiramente desassistidos.
Faz-se necessária a reflexão de que, se uma nova realidade social é desejável, não será possível implementá-la senão por meio de uma reconfiguração da atuação estatal, a fim de que passe a refletir, efetivamente, os interesses dos cidadãos, compatibilizando-os com as práticas econômicas, em vez de deixá-los para o último plano.
Só será possível implementar uma nova realidade a partir do esforço de todos os entes: ao Estado cabe o dever constitucional de compatibilizar os inúmeros interesses sociais, como a livre concorrência e a livre iniciativa, bem como a proteção dos consumidores, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades e a garantia do pleno emprego aos cidadãos, conforme o art. 170, IV, V, VI, VII e VIII, da Constituição Federal de 1988, promovendo, junto aos fornecedores, a base necessária para que os cidadãos – consumidores e trabalhadores – busquem uma sociedade mais solidária, inclusiva e preocupada com o meio ambiente.
O presente trabalho teve como objetivo analisar alguns efeitos da pandemia da Covid-19 nas relações consumeristas e laborais, na ótica do Estado brasileiro que, atualmente, é assumidamente neoliberal, e que, ao longo desta grave crise, em diversos momentos deixou os cidadãos desassistidos de seus direitos sociais e individuais mais básicos, como uma efetiva assistência à saúde; outros direitos, como o auxílio emergencial, foram obtidos somente mediante intensa pressão social.
Com o isolamento social decorrente da pandemia, novos hábitos de consumo e de trabalho surgiram, bem como novas reflexões sobre a apropriação dos recursos naturais pelos seres humanos, constituindo mudanças transitórias ou permanentes, com algumas tendências já se concretizando e se projetando para o futuro, a exemplo de um maior consumo pelas plataformas de consumo compartilhado, bem como a ampliação do trabalho remoto.
Ambas as figuras, trabalhador e consumidor, são as partes vulneráveis, respectivamente, nas relações de trabalho e de consumo, cujas vulnerabilidades foram ainda mais expostas durante o cenário pandêmico. Eis a importância de uma atuação estatal que harmonize estas relações com os interesses econômicos, em vez de suprimir os direitos dos que mais precisam de assistência em momentos de crise.
O Estado neoliberal se esforça para atender aos interesses da classe econômica dominante, abstendo-se de agir ou agindo positivamente para promover a concorrência no mercado, mas que acaba se estendendo para todos os níveis sociais, inclusive nas relações entre os próprios indivíduos, momento em que se observa o neossujeito.
Com o advento de uma crise sanitária, social e econômica sem precedentes, questionou-se se é possível reconfigurar a realidade social, para melhor, dentro de um Estado neoliberal, que possui um projeto que dificilmente coincide com os interesses dos cidadãos. Nesse sentido, notou-se que a pandemia pôs fim ao mito do mercado que se autorregula, uma vez que é algo comum, em momentos de crise, os fornecedores recorrerem ao Estado para buscar subsídios, reduções tributárias e de direitos trabalhistas, políticas de austeridade fiscal, dentre outras medidas.
Da mesma forma, a crise também demonstrou a insuficiência do discurso econômico liberal, resgatando a importância dos Estados no contexto de crise, como o grande responsável por políticas públicas de saúde, sociais e econômicas que, dependendo do modo como foram concebidas e executadas, podem determinar seu protagonismo na gestão da conflituosidade social, protegendo grupos vulneráveis, como também o exercício da atividade econômica.
Por fim, a pandemia evidenciou a precarização do trabalho e desmistificou a lógica do “empreendedor de si mesmo” nas plataformas de consumo compartilhado, mostrando o quanto é preciso avançar na oferta do emprego formal e na proteção do trabalhador, o que repercutirá em favor do consumidor, seja na qualidade do atendimento, seja quanto à adequação e segurança dos serviços.
O varejo tradicional foi o mais afetado pela crise econômica e vem cedendo espaço para o comércio eletrônico, sofrendo com a dura concorrência das grandes plataformas virtuais, sobretudo as transnacionais, assim como das fábricas que, depois da pandemia, não querem mais intermediários na venda direta ao consumidor, que tem mudado seus hábitos de consumo e passou confiar mais nas compras
O empoderamento do consumidor digital será, também, uma consequência importante dessa ruptura, fortalecendo as bases de um consumo identitário, analisado sob a ótica do compartilhamento de experiências
O empresário, pós-crise, precisará se reinventar, pois, se cada vez mais influenciado pelo valor da marca nesse ambiente tão competitivo, deverá assumir uma postura mais responsável, entregando ao consumidor muito mais que um bom preço ou condição de pagamento, revelando outras habilidades que criem uma relação de identidade com o cliente, de modo a conseguir se manter relevante no mercado e, ao mesmo tempo, fidelizar consumidores cada vez mais seletivos, como no bom exemplo das empresas que se diferenciaram na crise por preservarem os empregos e zelarem pela saúde física e mental de seus colaboradores.
Conclui-se, portanto, que, para alcançar uma nova realidade social, não será possível fazê-la senão por meio de uma reconfiguração da atuação estatal, a fim de que passe a refletir, efetivamente, os interesses dos cidadãos, compatibilizando-os com as práticas econômicas, em vez de deixá-los para o último plano.
Só será possível implementar uma nova realidade a partir do esforço de todos os entes: o Estado deve cumprir o seu papel constitucional de compatibilizador dos inúmeros interesses sociais, como livre concorrência e livre iniciativa, com a proteção dos consumidores, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades e a garantia do pleno emprego aos cidadãos, conforme o art. 170, IV, V, VI, VII e VIII, da Constituição Federal de 1988, promovendo, junto aos fornecedores, a base necessária para que os cidadãos – consumidores e trabalhadores – busquem uma sociedade mais solidária, inclusiva e preocupada com o meio ambiente.