Mestranda em “Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional” pelo Centro Universitário do Estado do Pará – Cesupa. Advogada, Membro do Grupo de Pesquisa Filosofia Prática: Investigação em Política, Ética e Direito, FILPED, vinculado à Faculdade de Filosofia e ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará – UFPA. Membro do Grupo de Pesquisa Democracia e Feminismos vinculado à Liga Acadêmica Jurídica do Pará – Lajupa. Membro do Grupo de Pesquisa Teorias Normativas do Direito, TND, vinculado ao PPGD – UFPA.
Mestre em “Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional” pelo Centro Universitário do Estado do Pará – Cesupa. Doutorando em “Direitos Humanos e Meio Ambiente” na temática “O trabalho análogo ao de escravo” pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará – UFPA. Bacharel em Psicologia e Advogado. Participa, atualmente, enquanto Pesquisador, do Grupo de Pesquisa “Trabalho Escravo Contemporâneo” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8608839500285752), do Grupo de Pesquisa “Teorias Normativas do Direito” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6812942504738548) e do grupo de Pesquisa “Novas formas de trabalho, velhas práticas escravistas” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5232633034974997).
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará (2000). Mestrado (2005) e Doutorado (2014) em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Ex-Coordenadora de Ensino do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (01/2011 a 04/2016) e Vice-Diretora do Curso de Direito da UFPA (12/2010 a 12/2014). Conselheira da OAB/PA (2007/2009 e 2010/2012). Diretora da Faculdade de Direito da UFPA (2017/2019 e reeleita para 2019/2021) ficando na função até 31.08.2019. Diretora Adjunta do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA (01.09.2019 a 03.05.2020). Professora da Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. Diretora Geral do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA (04.05.2020). Membro da Escola de Advocacia Trabalhista da ABRAT (2018/2020). Diretora da Revista Científica da ABRAT (2016/2018). Diretora da Associação Luso-Brasileira de Juristas Trabalhistas – JUTRA (2016-2018; 2018-2020). Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia do PPGD/UFPA. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho e Direitos Humanos, atuando principalmente nos seguintes temas: trabalho análogo ao de escravo, trabalho forçado, sindical e clínicas de direitos humanos. Coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPQ: “Novas formas de trabalho, velhas práticas escravistas” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5232633034974997). Pesquisadora dos seguintes Grupos de Pesquisas CNPQ: “Biodiversidade, Sociedade e Território na Amazônia – BEST Amazônia” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1337512272041455), “Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8608839500285752) e “Direito do Trabalho e os Dilemas da Sociedade Contemporânea” (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8601349387287062).
O momento atual é caracterizado por um autoritarismo crescente, pelo racismo, sexismo, xenofobia cada vez menos envergonhados no discurso público, pelo desmonte do Estado-social, por um agravamento sem precedentes das desigualdades sociais, pelo desencantamento com relação à política; ao mesmo tempo, testemunha-se um ataque sem precedentes aos recursos naturais, às populações tradicionais e aos saberes locais. Trata-se de sintomas muito claros e situados dentro do que pode ser chamado de uma razão de mundo neoliberal, na qual mercado e, sobretudo, a concorrência se expandem cada vez mais, por todas as esferas da vida, transformando tudo aquilo que for possível em um potencial produto a ser consumido. Partindo de tais premissas, questiona-se uma série de conceitos e ideias, como desenvolvimento, progresso e políticas públicas que podem, sob diversos discursos de dissimulação, servirem a interesses de elites e oligarquias ao mesmo tempo em que permitem uma ampliação de situações de violência e exclusão. Assim, por meio de uma pesquisa bibliográfica, busca-se, na primeira seção, descrever aspectos relacionados à produção e reprodução no sistema capitalista neoliberal, priorizando-se a questão de gênero, para, na segunda seção, pensar o princípio político do comum enquanto caminho para a superação da razão de mercado, através de uma lógica mais pautada na solidariedade e, sobretudo, na coatividade, que implica, simultaneamente, não só o desenvolvimento de determinada atividade comum, como, também, a autogestão desse grupo.
The present moment is characterized by a growing authoritarianism, racism, sexism, xenophobia less and less ashamed in public discourse, the dismantling of the welfare state, an unprecedented aggravation of social inequalities, and disenchantment with politics, at the same time, witnesses an unprecedented attack on natural resources, traditional populations and local knowledge. These are very clear symptoms and located within what can be called a reason for the neoliberal world, in which the market and above all the competition expand more and more, through all spheres of life, transforming everything that is possible, into a potential product to be consumed. Based on these premises, a series of concepts and ideas are questioned, such as development, progress and public policies that can, under different discourses of dissimulation, serve the interests of elites and oligarchies while allowing an expansion of situations of violence. and exclusion. Thus, through a bibliographic search, we seek, in the first section, to describe aspects related to production and reproduction in the neoliberal capitalist system, prioritizing the gender issue to, in the second section, think about the political principle of the common as a path to the overcoming of the market reason, through a logic based more on solidarity and, above all, on coactivity, which implies, simultaneously, not only the development of a certain common activity, but also the self-management of this group.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Produção e reprodução no sistema capitalista neoliberal; 1.1 Exploração e expropriação no capitalismo neoliberal; 1.2 O trabalho reprodutivo enquanto ferramenta de exploração do sistema capitalista neoliberal; 2 O comum como reestruturação social; Considerações finais; Referências.
O momento atual é caracterizado por um autoritarismo crescente, o qual é alimentado pelo racismo, sexismo e xenofobia cada vez menos envergonhados no discurso público. Esse cenário é também preenchido com o desmonte do Estado-social, agravando, de forma violenta, desigualdades sociais e provocando um desencantamento relacionado à política. Tal conjuntura divide o espaço, ainda, com um ataque sem precedentes aos recursos naturais, às populações tradicionais e aos saberes locais.
Trata-se de alguns exemplos que, mesmo gerais, são sintomas de um tempo e de uma sociedade adoecida por uma razão de mundo que não encontra limites para se expandir, cada vez mais, por todas as esferas da vida, transformando tudo aquilo que for possível em objeto de troca, escolha e concorrência, ou seja, um potencial produto a ser consumido.
Nesse contexto, no qual uma razão de mundo – neoliberal
Para tanto, traz-se para a discussão o pensamento de
Esse cenário demonstra que os efeitos são profundos, pois, de forma global, mas com interferências mais graves em países economicamente mais frágeis, os alimentos ficaram cada vez mais escassos e caros, as populações experimentaram uma redução substancial no poder de compra, os salários foram congelados, as taxas de desemprego dispararam, seguindo-se a ajustes estruturais envolvendo a redução de direitos sociais. Tudo isso sem citar e aprofundar a luta das mulheres pela defesa da agricultura de subsistência, fortemente combatida pela razão neoliberal, percebendo-a como uma atividade não produtiva – como a atividade doméstica e do cuidado –, esquecendo-se, de forma perversa, que são as mulheres as principais responsáveis pelo que ainda resta no campo da segurança alimentar – boa parte dela fundada em sistemas regionais autossuficientes baseados na solidariedade e na recusa à concorrência (
Diante desse breve exemplo, é importante questionar-se: a ampla liberalização da economia desses países trouxe melhorias sociais e econômicas para os sujeitos explorados e expropriados?
Pode-se citar outro exemplo, como a experiência dos agricultores familiares que se vincularam, através dos chamados contratos de adesão, ao grande agronegócio para a produção do dendê na Amazônia brasileira e, em especial, no estado do Pará. Em tais casos, o campesinato – ou seja, a pequena produção de gêneros essenciais à alimentação e subsistência com a venda ou troca de excedentes junto a comunidades mais próximas – fora violentamente substituído por uma prática produtiva completamente alheia à região e aos modos de vida local e cujo discurso de convencimento girou em torno de ideias como empreendedorismo, autonomia, enriquecimento e liberdade; entre outros termos, vendeu-se aos agricultores uma oportunidade de eles tomarem as rédeas de suas próprias vidas, como empresários de si mesmos. No entanto, em verdade, o que se percebeu foi um aumento considerável das formas de exploração desses supostos parceiros, chegando-se, inclusive, à constatação de formas modernas de aviamento, de escravidão contemporânea por dívidas (
Em ambos os casos, apesar de geograficamente distantes, existem inúmeros pontos de convergência, não cabendo aqui aprofundá-los; entretanto, o que será feito nas sessões seguintes é abordar o pano de fundo teórico que perpassa os dois casos citados e tantos outros, ou seja, suscitar os elementos teóricos e políticos que permitem a multiplicação de exemplos como esses, sob os mais diversos campos de atuação e trabalho humano e como se pensar em formas de opor resistência à estruturação desigual do sistema capitalista neoliberal.
O neoliberalismo desenvolve-se a partir da oposição a três relevantes elementos históricos e sociais que ditaram a ação do Estado e da sociedade, formando uma nova compreensão de liberalismo, a qual não se limita a uma opção econômica e política. A exemplo, a reação à política keynesiana, aos pactos sociais de guerra e ao crescimento da administração federal por meio de programas econômicos e sociais na América do Norte, construiu o caminho para que o liberalismo nos Estados Unidos se tornasse “[...] toda uma maneira de ser e de pensar” (
O liberalismo funcionou nesse sentido como um “[...] fundador e legitimador do Estado” (
De acordo com o fundamento neoliberal descrito por Foucault (2004), há a incursão da análise econômica no campo do trabalho, transformando o trabalhador em sujeito econômico ativo. Nesse prisma, a economia funciona para além da “[...] lógica histórica de processo, é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade dos indivíduos” (
Há, então, uma conexão do sujeito neoliberal ao
Molda-se a forma de agir e pensar dentro das sociedades modernas a partir do capitalismo, cujos desdobramentos, fundados em acontecimentos históricos, políticos e sociais, desembocam em uma nova constituição de si próprio sob a racionalidade neoliberal, cuja principal característica consiste na mercantilização de tudo, inclusive dos seres humanos e das relações desenvolvidas por eles. Esses são os parâmetros de formação em que se assenta a imagem social, promovendo um claro caminho da construção que determina as regras sobre quem é valorizado e quem é subjugado nesses modelos de sociedades capitalistas. O objetivo central do neoliberalismo reside, consoante a perspectiva de
O sujeito produtivo, visceralmente envolvido na eficácia do seu trabalho, é o resultado da congregação dessas subjetividades, concebidas com o propósito de torná-lo instrumento de produção, convicto de que o desempenho e o máximo lucro são as razões de vida dos seres humanos, pois “[...] a racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (
A sociedade é modelada a partir de um padrão de funcionamento que promove o sujeito como uma empresa, homogeneizando a ação em torno dos interesses individuais e do lucro, operando o desvanecimento da pluralidade humana nas suas mais diversas formas, ignorando, inclusive, a subjetividade que a democracia liberal tentou conciliar. Esse sujeito unitário apresenta as características do sujeito empresarial neoliberal, também chamado de neossujeito (
O sentimento de coletividade, expresso em termos como solidariedade e cidadania, são postos em xeque por uma crescente polarização no interior da sociedade, clivando-se aqueles considerados bem-sucedidos dos fracassados e, ainda, a ascensão, sem qualquer pudor, de discursos racistas, sexistas etc. Opera uma lógica concorrencial tendendo a inviabilizar qualquer ação coletiva que possa oferecer resistência – e ao Estado deve caber um papel de regulação, favorecendo a concorrência e estimulando ao máximo uma obrigação de escolha (
Enquanto nova formulação de comportamento, o novo sujeito projeta apenas a sua realização pessoal, porém o faz por meio dos “[...] dispositivos de direção das condutas” (
Impõe-se a cultura da empresa como nova subjetividade, criando uma governamentalidade
Originalmente, o capitalismo é pensado apenas como um sistema econômico, a partir das suas características centrais, atreladas às imagens de propriedade privada, mercado, trabalho assalariado, produção de mercadorias e todos os demais elementos monetizados e mantidos para incorporar ou produzir valor econômico, institucionalizando o crescimento produtivo como um sistema imperativo. Entretanto, uma análise mais bem empreendida do panorama global e histórico aponta para o sistema capitalista enquanto uma construção múltipla, desenvolvida de forma não apenas global, como, também, nacional, com nuances específicas em cada momento de seu desenvolvimento (
Essa relação é cristalizada em uma transação mercadológica na qual a força de trabalho é trocada por salário. Porém, essa não é uma troca equivalente. Pelo contrário, o capitalista paga apenas aos trabalhadores o tempo de trabalho para a produção, apropriando-se do resto do tempo de trabalho como mais-valia. Esta é a relação de exploração na visão tradicional marxiana do capitalismo (
O modelo capitalista neoliberal de formação e de interação social é, assim, pautado em uma variedade de relações de exploração, as quais permeiam e determinam os padrões de vidas hierárquicos marcados na centralização de determinados participantes da sociedade, engessando os lugares precarizados para que a movimentação entre os espaços sociais seja extremamente difícil, vez que as ferramentas para essa mudança acontecer não são incentivadas na ordem capitalista.
Com o desenvolvimento das relações sociais capitalistas, a organização familiar, o consumo da vida social e o modelo de vida se transformam e seguem padrões e valores artificialmente criados enquanto um conjunto de necessidades. A mecanização das relações sociais permite o surgimento de uma produção engajada a preencher as novas necessidades criadas pelo próprio sistema, à medida que tipos originais de serviços e de mercadorias passam a ocupar os interesses dos indivíduos, assim como as relações humanas disponíveis dentro dessa lógica.
A vida humana passa a ser ainda mais mercantilizada, desenvolvendo-se uma universalização das relações de compra e venda, diretamente envolvidas com a generalização das vontades dispostas no modo de vida construídos pelo capitalismo. Esse modo de produzir está intrinsecamente ligado à nova forma de reprodução social, que, por sua vez, conecta a vida material com a vida social.
Para tanto, é importante salientar que a reprodução é compreendida nessa análise não de maneira restrita apenas à reprodução da força de trabalho e ao cuidado intrafamiliar, mas envolvendo a perpetuação da lógica capitalista, incorporando, também, a socialização e a subjetivação dos indivíduos pertencentes a essa ordem. Nesse sentido, há três elementos reprodutivos: o biológico, o social e o ideológico. A combinação desses elementos não se desenvolve exclusivamente no lar, mas também em outros espaços de contato social que vão sendo cada vez mais mercantilizados, padronizando-se um modelo de viver e de agir (
O fomento a uma obrigação de escolher se torna uma das funções primordiais do Estado neoliberal, passando a compor tal modelo de viver e agir. Escolha pressupõe concorrência entre aqueles com melhores condições de atender a uma sociedade de clientes, ávidos pelo consumo, sendo, fundamental, assim, expandir sobre diferentes áreas da vida a concorrência de modo a que se possa “[...] escolher racionalmente, em todos os domínios, os melhores produtos e, cada vez mais, os melhores prestadores de serviços (o modo de entrega do seu correio, o fornecedor de sua eletricidade etc.)” (
A disciplina neoliberal não opera apenas sobre os sujeitos em sua vida privada, pois a própria dinâmica empresarial – sua gestão e organização do trabalho – altera-se profundamente. Os empregados e as empregadas passaram ser confrontados com técnicas que demandam uma entrega cada vez maior de resultados. As empresas centram seus esforços em atender aos acionistas – exigentes com dividendos e elevação do preço das ações –, e a formação salarial se alterou drasticamente, desconectando-se do seu aspecto produtivo; trabalhadores passaram a ganhar menos, ainda que a sua produção individual seja muito superior, aumentando, consequentemente, a desigualdade na distribuição de renda (
Defrontamo-nos com uma sociedade neoliberal em que uma de suas mais sensíveis características é a superexploração do trabalho, possibilitada, em muito, pelas altas taxas de desemprego e precariedade, colocando às pessoas a difícil escolha entre fome e exploração. É uma dinâmica que pressupõe o medo como motor de exploração desde o ingresso no mercado de trabalho até a manutenção do posto de emprego. Nesse caso, a gestão de mão de obra estabelece critérios e técnicas que constantemente avaliam e redirecionam o trabalhador para que se produza o máximo possível (
Em tal contexto, de medo social, foi possível o aumento significativo do grau de dependência dos trabalhadores em relação aos seus empregadores, e:
[...] a “naturalização” do risco no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às flutuações do mercado pela diminuição das proteções e das solidariedades coletivas são apenas duas faces da mesma moeda. Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores.
A coerção ao trabalhador passa a operar, sobretudo, de fora para dentro das empresas, vigorando, também, a dinâmica da sociedade do consumo, exigindo do trabalhador prazos e qualidade, instaurando entre os trabalhadores um clima competitivo para saber qual deles produzirá mais e terá o “rosto” da empresa, como uma virtude normal, impregnando a mentalidade do assalariado dessa sociedade neoliberal (
Portanto, a fase pela qual o neoliberalismo atravessa é marcada por uma forte vinculação do discurso sobre as pessoas com todo o imaginário que cerca a figura da empresa. O trabalhador, por seu turno, é fortemente encorajado a trabalhar para a empresa como se estivesse trabalhando para ele próprio, eliminando “[...] qualquer sentimento de alienação e até mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega” (
Na razão capitalista, os aspectos de marginalização social também se relacionam com a esfera econômica, expandindo o entendimento de exploração para além da divisão de classes, ao incorporar a sua formação aos atravessamentos das lutas de fronteira provenientes da expropriação ou despossessão
Existem duas formas de o capital se relacionar com os indivíduos, tornando-os exploráveis ou expropriáveis. A diferença principal entre ambas envolve a forma de acumulação utilizada. Vincula-se a exploração ao sistema de confisco que possui regulação, como, por exemplo, o contrato de trabalho, pelo qual o capitalista tira vantagem da força de trabalho, porém ainda é abrangido por um sistema precário – e cada vez mais precário – de proteção e de dotação de direitos. A acumulação por expropriação “[...] dispensa todas essas sutilezas em favor de um bruto confisco” (
A exploração da produção, portanto, não é o único meio de precarização humano; outros eixos de dominação, incluindo gênero e raça, são trabalhados para que o capitalismo se estruture. No entanto, frequentemente são processos ocultados, embora contribuam, ao menos de forma indireta, para a acumulação do mais-valor. Conceber de forma ampla o capitalismo envolve uma visão expandida da classe trabalhadora e uma compreensão alargada de luta de classes.
A visão alargada de capitalismo provém do entendimento de que há um conjunto de instituições econômicas dependentes das relações e processos não econômicos e sociais, gerador da separação institucional entre produção e reprodução, natureza humana e não humana, economia e política, raça, imperialismo e expropriação (Curty, 2020).
Ao superar-se o entendimento estreito de economicismo, é possível perceber as relações contraditórias e destrutivas da economia capitalista com os pressupostos não econômicos derivados da sua própria construção. As condições de fundo sustentam os circuitos oficiais do capital, o qual prioriza a análise do trabalho remunerado, porém ignora e usufrui do trabalho de assistência não remunerado, por meio dos bens públicos e das riquezas expropriadas dos sujeitos racializados e subalternizados. Essas descrições estruturais, geralmente consideradas secundárias, lançam uma nova luz sobre os conceitos de dominação e de emancipação de classe (
Nesse sentido, a economia capitalista depende de um fluxo contínuo e barato como a principal fonte de alimentação para a acumulação com a exploração, porém, na ausência da expropriação dos povos subjugados, a exploração dos trabalhadores livres não seria lucrativa. As dinâmicas capitalistas e as estruturas institucionais dependem dessa sobreposição entre o plano econômico e as condições de fundo que o sustentam (
A análise restrita, assim, falha em registrar uma série de tendências não econômicas que são igualmente constitutivas e alicerçadas neste modo de organização social; estas vêm claramente interligadas quando adotamos a concepção expandida de sociedade capitalista. Nessa visão ampliada, o capitalismo revela um catálogo estendido de injustiças sistêmicas, que tende a ser baseado nas divisões entre a economia capitalista e suas condições não econômicas de possibilidade (
A divisão entre a produção econômica e a reprodução social figura, dessa forma, como uma das mudanças epistêmicas necessárias para o desenvolvimento da compreensão enriquecida de capitalismo, capaz de revelar a imagem completa desse sistema complexo. Na produção, o trabalho é remunerado por meio de salários em dinheiro e institui uma divisão estrutural entre trabalhadores livres, que podem trocar sua força de trabalho pelo custo de sua reprodução, e outros dependentes, cujas pessoas e ativos podem simplesmente ser apreendidos, em razão da sua incapacidade de acessar as proteções de direitos ou o custo total de sua própria reprodução na forma de salário (
Pensar o capitalismo perpassa pelos diversos paradigmas que se desdobram através do tempo, sustentando o modo de vida social por meio das características centrais e também, as igualmente importantes, características do plano de fundo, sendo esse o “[...] caminho para ver o capitalismo como uma forma de vida inteira” (
Nessa ótica, expõe-se, ainda, a questão do uso incontido da natureza para a manutenção e o aumento do capital, “[...] tanto como uma ‘torneira’ que fornece ‘insumos’ à produção quanto como uma ‘pia’ que absorve o lixo da última” (
Outra mudança epistêmica indispensável à análise mais aprofundada do capitalismo enquanto uma ordem social institucionalizada é a que aponta a correlação da economia com a política, uma vez que o sistema “[...] depende de poderes públicos para estabelecer e fazer valer suas normas constitutivas” (
A visão mais comum sobre o neoliberalismo o considera uma ideologia e uma política econômica ancorada nessa ideologia. Nesse sentido, o mercado é visto como algo natural, com uma tendência ao equilíbrio;, logo, a interferência estatal seria prejudicial ao movimento do mercado, algo como o retorno do estado mínimo, e a palavra de ordem seria a desregulamentação e o desmonte dos aparatos sociais do Estado, assumindo uma postura de “anti-intervencionismo”. Entretanto, essa visão mais estreita está muito longe de representar o que de fato é o neoliberalismo (
Há, ainda, outras ferramentas para o funcionamento da sociedade capitalista – na visão expandida do sistema, o imperialismo e a opressão racial estão associados à categorização de
Há, nessa formação, a interconexão das características extraeconômicas, construtoras do mundo social, com as intrinsecamente econômicas, sobre as quais se edificam todas as regras do sistema capitalista. Essa complexa construção nos permite compreender todas as ações e os modelos de vida enquanto inseridos em uma ordem social institucionalizada, a qual identifica a existência de domínios intracapitalistas que podem ser extraeconômicos e, apesar de seu caráter não economicista, são contributos fundamentais à existência do capitalismo, especialmente o neoliberal.
A reprodução, assim como a expropriação de corpos racializados, funciona enquanto prática constitutiva dessa ordem capitalista, apesar de ser historicamente alijada da esfera economicista, estando também distante da preocupação direta do Estado no capitalismo financeirizado. Apesar de serem necessárias à existência do mundo econômico e social como o conhecemos, são descoladas da acumulação produtiva, sendo, então, tratadas com importância secundária quando analisadas do prisma unicamente econômico.
As dinâmicas de poder que determinam aos sujeitos as posições estruturais a serem ocupadas na sociedade capitalista são resultados, justamente, dessa diferença de gênero, raça e classe. São produtos das divisões e subjetivações desenhadas durante os processos de desenvolvimento do sistema capitalista, passando por diversas fases, porém mantendo o seu caráter segregador e abusivo.
O entrelaçamento entre gênero e raça nos leva, então, ao cruzamento entre exploração e expropriação, ambas categorias de acumulação indispensáveis para a análise do sistema capitalista. São, ainda, os processos que explicam o funcionamento de primeiro plano e do plano de fundo que compõem o capitalismo, os quais sustentam a ordem social institucionalizada por meio das atividades consideradas econômicas e não econômicas, pilares e reprodutores da formação e da lógica supremacista e masculina difundida no sistema capitalista.
Desta forma, a própria lógica do desenvolvimento capitalista manifesta-se por meio dessa estruturação de vulnerabilização dupla para muitos, causando desigualdade sistêmica, crises constantes e segregações estratégicas, desenhando por meio dessa luz distorcida a retratação social excludente. Toda essa formulação é orquestrada para que uns detenham privilégios, enquanto outros viram apenas ferramentas disponíveis a sustentar as vantagens usufruídas pelos que ocupam o centro da fotografia social e, portanto, também o topo da pirâmide que gradua o valor humano.
O trabalho produtivo é articulado de maneira indispensável com o trabalho reprodutivo, servindo como ferramenta para o acesso e o controle de recursos econômicos por meio da intervenção das instituições tanto políticas quanto sociais, como a família. A tarefa particular de repassar a consciência capitalista para as gerações que se seguem é realizada por meio da parcela humana responsável pelo cuidado reprodutivo, o que implica entender que é indispensável ampliar a “[...] análise marxiana do trabalho não remunerado para além dos limites do chão de fábrica e, assim, compreender que a casa e o trabalho doméstico não são estranhos ao sistema fabril, mas a sua base” (
A reprodução, nessa composição, não é algo inerte. As mudanças contextuais e históricas interferem na dinâmica reprodutiva, transformando e intensificando as suas demandas, porém permanecendo assentadas na lógica segregacionista e precarizadora que subalterniza mulheres. Essa circunstância integra as mulheres ao mundo produtivo, sem moderar as responsabilidades impostas pela demanda reprodutiva, gerando uma majoração das vulnerabilidades femininas. Trata-se de um antagonismo, pois, ainda que o capital dependa da força de trabalho que sustenta a reprodução, há um reforço para excluir essa atividade como trabalho necessário, desenvolvido majoritariamente pelas mulheres.
É necessário que se desafie a classificação do trabalho reprodutivo como improdutivo, como bem faz
Nesse sentido, a compreensão marxiana clássica de trabalho produtivo enquanto processo de produção da mais-valia não é suficiente para descrever a complexidade de um sistema produtivo que depende do trabalho reprodutivo ocultado das mulheres para se manter, pois
A desvalorização imposta pela generificação das atividades de produção “[...] diferenciou não somente as tarefas que as mulheres e os homens deveriam realizar, como também suas experiências, suas vidas, sua relação com o capital e com outros setores da classe trabalhadora” (
A racionalidade mercantil imposta pelo neoliberalismo transforma tanto o indivíduo quanto o Estado em competidores, anulando a capacidade colaborativa baseada na solidariedade, uma vez que a universalização da norma de concorrência prevalece nos planos de ação, ditando uma nova razão do mundo. Nesse sentido, a governamentalidade instaurada revela-se antidemocrática, guardiã do direito privado, incapaz de operar uma estrutura de combate às desigualdades (
O neoliberalismo proclama um ataque frontal ao social, gerador da força antidemocrática. Esse movimento permite a edificação de um verdadeiro repúdio à diversidade e a qualquer forma mais igualitária de convivência, pois “[...] a política se torna um campo de posicionamento extremo e intransigente, e a liberdade se torna um direito de apropriação, ruptura e até mesmo destruição do social – seu inimigo declarado” (
No mesmo segmento, a estruturação econômica é pensada justamente para embasar o aumento da segregação humana, uma vez que se prioriza como estratégia de governo o estrangulamento dos gastos sociais. Em termos políticos e ideológicos, o neoliberalismo, ao empregar a ideia de que seus princípios são a resposta para as crises e não os fatores que as acentuam, promoveu a normatização das condutas classistas, as quais passaram a atuar como se não houvesse alternativa viável ao seu implemento.
Essa lógica gera a desumanização dos grupos sociais expropriados, causando uma invisibilização da exploração sustentada, ou seja, “[...] trata-se da violência estrutural que se articula à forma como as estruturas políticas e econômicas afetam as populações que vivem à margem do sistema” (
Advêm dessa constituição políticas públicas pensadas com o intuito de perpetuar a integração da riqueza com o poder, isolando cada vez mais os privilegiados em um patamar inalcançável para os demais partícipes sociais, permitindo a precarização dos meios de vida por meio da “[...] imposição de políticas econômicas e sociais excludentes, com a conversão das democracias sociais em Estados desdemocratizados, despojados da soberania do povo e com cidadãos politicamente pacificados” (
Assim, o projeto social e político conduzido pelo neoliberalismo tem uma característica essencialmente antidemocrática na qual “[...] o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle mesmo sob a foeo promove, dessa forma, a necessidade de as mulheres sustentarem as suas famílias, sem, contudo, fornecer ferramentas para que sejam capazes de fazê-lo, pois, ao não priorizar o estímulo de políticas públicas sociais que garantam o suporte estrutural e financeiro que necessitam para administrar a família e o trabalho, na maioria das vezes precarizado, acabam promovendo a sua integração na economia global por um processo violento (Federici, 2019a).
A reprodução, nessa composição, não é algo inerte. As mudanças contextuais e históricas interferem na dinâmica reprodutiva, transformando e intensificando as suas demandas, porém permanecendo assentadas na lógica segregacionista e precarizadora que subalterniza mulheres. Essa circunstância integra as mulheres ao mundo produtivo, sem moderar as responsabilidades impostas pela demanda reprodutiva, gerando uma majoração das vulnerabilidades femininas. Trata-se de um antagonismo, pois, ainda que o capital dependa da força de trabalho que sustenta a reprodução, há um reforço para excluir essa atividade como trabalho necessário, desenvolvido majoritariamente pelas mulheres.
Esse modo produtivo imposto pelo sistema capitalista é responsável por dividir a sociedade em classes hierárquicas, mas, para além disso, incorpora às classes apenas os sujeitos explorados e obrigados a viver com a renda recebida, renegando aos expropriados a inferiorização mais violenta, tornando-os incapazes de sequer dispor de rendimento e de participação concreta. Nesse quadro, o modelo capitalista “[...] lança mão da tradição para justificar a marginalização efetiva ou potencial de certos setores da população do sistema produtivo de bens e serviços” (
Instaura-se nas sociedades capitalistas um processo de individualização com dupla desvantagem para as mulheres. A primeira refere-se ao nível superestrutural no qual “[...] era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da ordem social que a gerara” (
A reprodução, intrinsecamente ligada à manutenção não apenas da vida, mas da perpetuação das subjetividades humanas que comportam a racionalidade capitalista, é organizada nesse sistema como não remunerada, construída como contígua na ordem produtiva de bens e serviços.
Com apenas a competição e o valor, aumentando o capital humano, a complexa e persistente desigualdade de gênero é acentuada, indo de encontro à concepção de liberdade apresentada pela racionalidade neoliberal à medida que as mulheres continuam a ser as principais provedoras de trabalho reprodutivo não remunerado, sustentando tal demanda sem apoio social ou econômico, tornando-se, cada vez mais, fontes de renda individuais para si mesmas e suas famílias (
Fica claro, portanto, que o capitalismo na forma neoliberal constrói não apenas um regime de acumulação excludente, mas todo um conjunto de regras e formulações que utiliza mecanismos de dominação e exercícios de poder para cultivar um novo modelo de sociedade, pois “[...] o Estado neoliberal deve buscar persistentemente reorganizações internas e novos arranjos institucionais que melhorem a sua posição global competitiva como entidade diante de outros Estados no mercado global” (
A dinâmica de neoliberalização tem revelado um contexto que reduz os recursos pessoais advindos do mercado de trabalho, devolvendo a responsabilização do bem-estar exclusivamente para o indivíduo, “[...] à medida que reduz recursos dedicados ao bem-estar social e reduz seu papel em áreas como assistência à saúde, o ensino público e a assistência social” (
Isso demonstra que, por trás das massivas mudanças das políticas sociais, figuram indispensáveis mudanças estruturais, cuja natureza é da nova governança exigida. Assim, a “[...] seguridade social é reduzida ao mínimo indispensável em favor de um sistema que acentua a responsabilidade individual. Em geral atribuem os fracassos pessoais a falhas individuais, e com demasiada frequência, a vítima é quem leva a culpa” (
Privilegiam-se, nesse modelo de governar, as corporações em detrimento dos indivíduos, levando os governos a agirem de forma coercitiva, inclusive impondo parcerias público-privadas que, dentre outros interesses, buscam reprimir formas coletivas de oposição ao poder hegemônico e corporativo, o qual usa o aparato estatal para funcionar do modo mais lucrativo para si próprio, negando valor “[...] aos problemas que surgem entre os trabalhadores descartados e populações marginalizadas” (
A história do desenvolvimento desigual em virtude da neoliberalização “[...] tem sido tendência universal a aumentar a desigualdade social e a expor os membros menos afortunados de toda e qualquer sociedade” (
Desse modo, o padrão de governos e sociedades regulados na generalização do mercado apoia os contextos de crise, travando uma luta ideológica contra o estado social, pautando-se, também, na produção e reprodução femininas. Num mundo em que o discurso dominante de crescimento econômico enfatiza o papel do setor privado e as formas de reduzir os orçamentos estaduais, o discurso de desenvolvimento fica atrelado às premissas neoliberais que oferecem oportunidade de crescimento aos capitalistas, os quais subalternizam preferencialmente as mulheres ao cercear as possibilidades de sustentação material e incorporação social de que elas poderiam dispor.
Vários elementos neoliberais que são disseminados e aprofundados promovem a redefinição da sociedade civil como objeto e sujeito de governo, produzindo disparidades de gênero que propagam a responsabilidade pelo seu próprio bem-estar como o objetivo de sucesso a ser alcançado, porém sem revelar que, para tanto, haverá a desumanização de diversos atores sociais.
A estrutura de classes permeada pela análise de gênero torna-se, assim, um dispositivo importante para avaliar as relações que administram a linha divisória entre o visível e o invisível, entre o acessível e o inacessível, entre o público e o privado, dentro das tensões de poder que constroem os parâmetros para a formação social. Isso significa que o trabalho feminino compreendido como um tipo de trabalho considerado doméstico, afetivo, imaterial ou reprodutivo está ligado às funções de cuidado e à socialização, precisando no mundo neoliberal ser equilibrado com o trabalho produtivo.
A superação da razão neoliberal não virá sem grande dose de esforço, e, como apontam
Essa razão do comum implica que seja abandonada a noção de empresa de si mesmo e, para com os outros, a superação da visão de estrita concorrência. Em outros termos, deve-se romper – no plano individual – a percepção de se querer sempre mais e melhor e, do ponto de vista coletivo, deixar condutas concorrenciais em prol de práticas de cooperação e solidariedade. Contraconduta, nesse sentido, tem um cunho revolucionário de se opor deliberadamente a forma como a qual se é conduzido e como se autoconduz.
Conforme discutido no tópico anterior, o sistema econômico e social capitalista neoliberal promove um panorama de exploração e expropriação articuladas que incidem sobre as mulheres de forma opressiva, mas, não apenas sobre elas, um amplo conjunto de sujeitos são diretamente afetados e subordinados a essa lógica das mais diversas maneiras. A articulação de propostas a serem apresentadas a partir de agora contemplam não só as mulheres, mas podem ter um poder mais global de luta contra a razão neoliberal e emancipação. Trata-se da superação de uma razão neoliberal por uma razão do comum.
Não se pretende esgotar o tema do comum neste artigo; entretanto, objetiva-se, ao menos, abordar um conjunto de ideias que permitam elaborar os primeiros passos para se pensar soluções sob uma nova ótica que, apesar de não ser nova, tendo seus estudos iniciados de forma mais contundente em meados de 1990, vem ganhando corpo por ser capaz de reunir uma pluralidade de interesses que vão desde as lutas feministas até, por exemplo, à luta pelos cyberspaços tecnológicos, passando por movimentos ambientalistas e movimentos de reforma urbana, pois trata-se de um princípio político que não se direciona tanto a “[...] proteger ‘bens’ fundamentais para a sobrevivência humana, mas de mudar profundamente a economia e a sociedade,
Como discutido anteriormente, o sistema neoliberal tem o objetivo de estender seus tentáculos – mercado e concorrência – por todas as esferas da vida; logo, não há qualquer dimensão que esteja a salvo; ao mesmo tempo, como destacam
Nota-se uma profunda transformação do papel do Estado que, se antes guardava algum respeito pela garantia do estado de bem-estar social, hoje se preocupa fundamentalmente em garantir as regras da globalização e fomentar a concorrência. Portanto, não há como se falar que o Estado saiu de cena; pelo contrário, está mais ativo que nunca, agora como fomentador da concorrência generalizada (
A importância assumida pelo comum nos dias de hoje decorre, sobretudo, pelo desencantamento com o Estado e pela constatação de que ele será incapaz de assumir e pôr em prática pautas progressistas, pois, para muitos, não é possível acreditar “[...] que o Estado poderia ser o recurso da sociedade contra os efeitos desastrosos do capitalismo” (
Mas, afinal, o que vem a ser esse comum? Trata-se, assim como o neoliberalismo, de um termo excessivamente complexo, analisado e utilizado sob diversos marcos teóricos, sendo, por óbvio, impossível considerar toda a sua amplitude. É necessária uma delimitação, e, nesse sentido, priorizam-se as concepções apresentadas por
Um ponto de partida importante é fixar que comum não se confunde com uma propriedade compartilhada por várias pessoas, tampouco se pode dizer que determinada coisa é comum em razão de sua natureza ou, mesmo, que em função da humanidade as pessoas tendem a ter coisas em comum. Segundo
Tal enfoque faz os autores realocarem até mesmo a crença em uma universalidade dos seres humanos, pois apenas fará sentido falar em uma universalidade prática pertencente apenas aos sujeitos inseridos em um dado tempo e envolvidos em uma mesma atividade (
Outro aspecto essencial diz respeito ao papel a ser assumido pelo Estado quando se privilegia o princípio político do comum. Neste caso, o Estado deixa de ser visto como um pretenso defensor das populações e assume uma função de promotor de formas democráticas de controle dos recursos comuns; portanto, o foco é o autogoverno local, e não se trata do Estado definir a vida das pessoas consoante objetivos seus, mas, pelo contrário, trata-se de criar condições e abrir caminho para que as decisões sejam tomadas por aqueles que coparticipam de determinada atividade comum (
Não poderia ser diferente, pois
Nota-se, assim, o viés radicalmente democrático como base do princípio do comum, afastando-o tanto do capitalismo quanto das soluções ligadas ao comunismo de Estado
Logo, resta claro que a “[...] apenas a coparticipação na decisão produz a coobrigação na execução da decisão” (
Repensar a forma de viver em sociedade torna-se, assim, imprescindível, uma vez que a racionalidade neoliberal trouxe o modelo individualista e financeirizado como parâmetro de convívio, ou da falta dele, e tal padrão tem-se mostrado continuamente em crise. Para tanto, precisa-se formular um projeto político que atenda as necessidades sociais, tomando por ponto de partida a consciência de que as sociedades se assentam em parâmetros excludentes para determinados grupos, uma vez que estão alicerçadas no modelo de exploração capitalista, patriarcal e racista.
O comum aparece, então, como uma alternativa à forma de viver atual do mercado e do Estado, focando na possibilidade de se reviver a cooperação entre os indivíduos, trazendo consigo um projeto político que não apenas questiona a estrutura imposta, mas também oferece uma via de retorno à solidariedade e à cooperação humana, há muito esquecida pelo neoliberalismo.
Dessa forma, o comum pode ser constituído de forma complexa, englobando “[...] terra, água, os comuns do ar, comuns digitais, comuns de serviços; nossos direitos conquistados (por exemplo, pensões de seguridade social), assim como as línguas, as bibliotecas e as produções coletivas das culturas do passado” (
Adota-se a perspectiva de um mundo para além daquele que o capitalismo oferece, realocando para o centro da mudança social a reprodução, ao propor a superação da exploração, amplamente intensificada quando a divisão entre público e privado foi imposta, definindo papéis exclusivos para homens e mulheres. Busca-se organizar coletivamente a reprodução, pensando em uma política que compreenda a necessidade de se transpor as funções impostas às mulheres, as quais limitam a sua potência e principalmente a sua participação política (
O comum oferece um princípio de organização social emancipatória, reunindo formas de produção que exercitam a participação coletiva. Na visão de
[...] devemos enfatizar, no entanto, que as iniciativas comuns que vemos proliferando ao nosso redor, “bancos de tempo”, hortas urbanas, agricultura apoiada pela comunidade, cooperativas de alimentos, moedas locais, licenças comuns criativas, práticas de troca, compartilhamento de informações – são mais do que diques contra o ataque neoliberal ao nosso sustento.
A criação de novas formas de socialização e de produção, organizadas sob o princípio da cooperação como impulso transformativo das relações sociais, é apontada como uma nova base para sociedade, a qual implica uma reconstrução das relações sociais que permita as divisões entre classes, raciais e patriarcais a se dissolverem.
A política do comum é pensada através de alguns critérios e reforça a autonomia dos espaços e a superação das divisões sociais, incentiva o uso da propriedade compartilhada, a disposição para o trabalho cooperativo e para toda a negociação, acordos, aprendizagem e formas de lidar com conflitos existentes, a partir da convivência plural. Os comuns enquanto modelo comunitário baseiam-se então em respeito, reciprocidade, solidariedade, cooperação e, principalmente, na divisão de responsabilidade pela reprodução, pelo cuidado, o qual, no modelo capitalista, é tratado como responsabilidade das mulheres (
Os comuns dependem, portanto, de uma forma coletiva de tomada de decisões, por meio de modelos democráticos, o que distingue os comuns do comunismo, que, por sua vez, está atrelado ao poder do Estado, tomado de assalto por um partido ou por uma burocracia planificadora; no comum não há a intenção de abandonar o Estado; há, entretanto, uma vontade de transformação do espaço público em espaço comum, descentralizado das mãos daqueles que sempre o ocuparam e usufruíram dele, arrancando o máximo de privilégios possível, enquanto explora e expropria os grupos subalternizados.
Nos comuns, as decisões a respeito do andamento das vidas das pessoas das comunidades são tomadas coletivamente, pois há uma perspectiva sempre sobre o interesse coletivo sobre todos os aspectos que englobam as vidas humanas, e, dessa forma, o trabalho político exercido no seio dessa forma de convivência é comprometido com equidade, e não com hierarquia social, priorizando as lutas que pensam em um desenvolvimento realmente coletivo (
Partindo dos breves exemplos contidos na introdução – expropriação de terras comunais, liberalização de mercados e integração da agricultura familiar do dendê –, avançou-se no objetivo de demonstrar como se opera a lógica capitalista sob a razão do mundo neoliberal. Foi possível articular como o mercado e o Estado operam em conjunto, ora explorando, ora expropriando, definindo aquilo que pode ser considerado produtivo ou não, pautando-se exclusivamente em estender as relações de concorrência pelos mais diversos espaços de vida. Nesse sentido, toda a atividade que foge ao espaço do mercado tende a ser desprezada.
Como exposto, não compreender a produtividade do trabalho reprodutivo, além de escamotear o real valor da reprodução, divide a sociedade em classes hierárquicas na base de quem contribui mais para o sistema e, nessa linha, quanto menos se contribui, menor a importância atribuída e mais violenta as experiências de vida. Tal processo é muito mais desvantajoso para as mulheres que já sofrem com mitos sociais que as inferiorizam, relegando-as às funções sociais consideradas menos nobres e, sobretudo, limitando-as, em muitos casos, ao trabalho reprodutivo não remunerado do cuidado doméstico, ligado à manutenção da vida daqueles que praticam o trabalho produtivo.
Logo, convém encerrar da mesma forma que se começou. Apontando exemplos que permitam perceber que uma outra razão de mundo, oposta à razão neoliberal, não só é possível como já ocorre nos mais diversos pontos do globo.
Nota-se, no estado do Pará, a participação de mulheres agricultoras no associativismo comunitário e na produção agrícola/agroecológica como um meio para modificar a realidade, não apenas econômica e social na qual estão inseridas, marcado pela monocultura e pelas relações de desigualdade de gênero. Em especial, um projeto desenvolvido pela Associação de Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (Amabela), composto por 75 mulheres trabalhadoras rurais. O objetivo fundamental dessa associação é aliar demandas produtivas às pautas feministas, mantendo, como princípio, a agroecologia.
Esse movimento coletivo de mulheres surgiu em Belterra, no oeste do Estado do Pará, buscando meios sustentáveis para lidar com a vida em um ambiente tomado pelas plantações de soja e pulverizações de agrotóxicos, apresentando uma clássica estruturação social rural, em que a vida das mulheres, de um modo geral, é restrita ao âmbito privado, com vinculação ao casamento. O surgimento da Amabela deve-se, em grande medida, à insatisfação dessas mulheres em viver em contato direto com as consequências da industrialização do meio rural, em um ambiente diariamente mais tóxico à natureza e aos seres humanos, assim como em virtude do pouco acesso à remuneração adequada para o seu sustento próprio e o de suas famílias, aliados aos obstáculos derivados da relação de dominação social, que resultam na inferioridade com a qual são tratadas.
A utilização da agroecologia, como meio de preservação do meio ambiente e de equilíbrio das relações sociais, é uma importante ferramenta para impulsionar a autonomia dessas mulheres enquanto detentoras de conhecimentos tradicionais, além de ser uma fonte de obtenção de recursos, o que as tornam indispensáveis para superar a divisão sexual do trabalho e para a sua emancipação, no âmbito familiar. O foco do projeto é, portanto, promover renda e autossuficiência para as 75 mulheres integrantes da associação, bem como impulsionar a valorização do conhecimento local, através do cultivo e do comércio dos mais diversos produtos derivados da agricultura familiar.
É, portanto, uma forma de resistência, um tipo de comum nos termos anteriormente descritos, reagindo às monoculturas das grandes empresas de soja e de milho, que não apenas degradam o solo como poluem o ar, os lençóis freáticos, destroem fauna e flora, em total falta de apreço pela comunidade e de respeito à força de trabalho nela disponível.
Dessa forma, demonstra-se que estruturar um modelo social baseado em cooperação é para além de possível, desejável. Embora o modelo capitalista e mais especificamente neoliberal nos leve a crer que só há uma via de existência possível – a de concorrência dos mercados –, projetos baseados em respeito, solidariedade, convivência e empatia traçam um caminho diferente, resistindo à desumanização empregada pelo sistema e proporcionando uma visão mais ampla e plural de mundo.
Considera-se, neste estudo, a interpretação de
Termo cunhado por