Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2018). Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013). Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, com bolsa de Pós-Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Mestre (2015) e Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação na Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
Bacharel (2015) em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
Mestra (2012) em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
Este trabalho busca articular o campo teórico da socialização legal e os estudos sociológicos sobre o adolescente em situação de conflito com a lei a partir de uma pesquisa qualitativa, ba-seada em entrevistas semiestruturadas e observação participante, com adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. A partir da análise preliminar dos dados coletados, observou-se que adolescentes infratores já se relacionam com as autoridades legais (polícia) antes de sua entrada no sistema e, nas audiências para decisão de seus processos, não interagem com os atores do sistema de justiça e não têm entendimento sobre o que se passa.
This paper seeks to articulate the theoretical field of legal socialization and sociological studies on punishment, based on qualitative research with court-involved youth. From the preliminary analysis of the data collected, it was observed that adolescent offenders already had relationships with the legal authorities (police) before entering the system and, in the custody hearings to decide their cases, do not interact with the actors in the juvenile justice system and have no understanding of what is going on.
SUMÁRIO: Introdução; 1 A socialização legal como campo de pesquisa; 2 Adolescentes e ato infracional nos estudos sociológicos; 3 Pesquisa de campo; 3.1 Contexto e território; 3.2 Técnicas de pesquisa; 3.2.1 Observação participante; 3.2.2 Entrevistas; 4 Resultados e discussão; Considerações finais; Referências.
Parte da tradição das pesquisas no País, notadamente na área das ciências sociais, debruça-se sobre a temática do ato infracional e da relação dos adolescentes com a criminalidade a partir do olhar sobre a punição, compreendendo as práticas e os dispositivos ali imbricados (
Este trabalho visa explorar as representações que essa parcela da população tem das autoridades com as quais se relaciona a partir do campo da socialização legal. Tal campo, conforme apresentado na seção seguinte, investiga as relações entre as autoridades e os adolescentes tendo em vista o desenvolvimento de disposições, atitudes e comportamentos legais.
O presente trabalho faz parte de uma pesquisa de pós-doutorado em andamento – parte do Estudo de Socialização Legal em São Paulo (SPLSS – sigla em inglês), no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – que busca entender como os adolescentes desenvolvem valores, atitudes e comportamentos a respeito das regras, leis e autoridades. Para compreender como se deu e se dá a socialização legal dos adolescentes que se encontram em situação de conflito com a lei, foram realizadas observações participantes e entrevistas com os adolescentes e com os técnicos responsáveis por acompanhar as medidas socioeducativas impostas judicialmente aos adolescentes, além da análise documental de suas pastas e prontuários. O campo foi desenvolvido em um serviço de medidas de meio aberto na cidade de São Paulo.
Algumas perguntas importantes orientaram o desenho da pesquisa, quais sejam: (i) quais foram as dinâmicas que influenciaram o processo de socialização dos adolescentes? (ii) como esses adolescentes enxergam as instituições que exercem o controle social? (iii) qual a narrativa desses adolescentes a respeito da legislação? (iv) e quais suas narrativas a respeito das autoridades?
Assim, para fins de organização, a primeira parte do trabalho busca dar conta de uma literatura pouco explorada para tratar da questão de como os adolescentes (nesse caso específico, aqueles a quem se atribui a prática de atos infracionais) desenvolvem valores, atitudes e comportamentos a respeito das regras, leis e autoridades. Em um segundo momento, é apresentada a literatura que vem analisando algumas relações dos adolescentes com a criminalidade a partir do olhar sobre as práticas do sistema de justiça e da punição, com a qual a presente pesquisa também dialoga. Na terceira parte, é descrito o campo da pesquisa desenvolvida e possíveis interpretações a partir do marco teórico utilizado. Por fim, ao problematizar as políticas públicas direcionadas a essa parcela da população (
A socialização é pensada como o meio pelo qual os indivíduos tornam-se membros dos agrupamentos sociais, em processos de internalização e (re)criação das regras pressupostas no convívio social. Parte do vocabulário básico de cientistas sociais, a socialização se confunde com a própria explicação de cunho sociológico (
Para os estudos em socialização legal, importa, sobretudo, compreender como é possível o comportamento aquiescente, a observância das leis para além das práticas dissuasórias cunhadas pelas autoridades legais (Tapp; Levine, 1970). Nesse sentido, as abordagens desse campo enfatizam o comportamento orientado pela lei como produto das ideias que os indivíduos nutrem sobre as regras e leis, dos valores internalizados em diversos sistemas sociais hierarquicamente regulados – como a família e a escola, por exemplo. Desses múltiplos processos socializadores resultarão avaliações sobre como as figuras de autoridade desempenham o poder que lhes é investido pela lei, o que orientará as atitudes frente aos sistemas de justiça (
Desde os primeiros estudos, esse processo de socialização legal é acessado a partir de diferentes abordagens teóricas. Por exemplo, em um trabalho crucial para esse campo (Tapp; Kohlberg, 1971), a socialização legal foi considerada como uma decorrência do desenvolvimento moral pessoal. Posteriormente, o escopo da socialização legal foi ampliado para além da teoria do desenvolvimento cognitivo. Para
Como Max Weber apontou em suas definições, as autoridades serão voluntariamente obedecidas quando são vistas como legítimas. Weber destacou que as bases das ordens legítimas variam histórica e socialmente, e as pessoas podem atribuir legitimidade em bases tradicionais, afetivas e racionais legais (
Seguindo a trilha aberta por Max Weber, diversos pesquisadores dos campos da psicologia, criminologia e ciências sociais têm apontado, a partir de pesquisas empíricas, que a legitimidade das autoridades depende de como administram o poder, uma vez que as pessoas esperam que o uso do poder seja baseado na racionalidade de regras jurídicas abstratas e na impessoalidade das relações com as autoridades (
Desde o pioneiro trabalho de Fagan & Tyler, reúnem-se evidências empíricas apontando que o processo de legitimação é um aspecto crucial da socialização legal (
Um mecanismo central de socialização é a interação que os indivíduos estabelecem com os outros, oportunidades de reconhecer o que é e o que não é aceitável aos olhos da sociedade (
Com base, sobretudo, em estudos de natureza quantitativa, pesquisadores têm demonstrado que os contatos sistemáticos com autoridades podem corroer a legitimidade (
Assim, prevalece na literatura internacional em socialização legal o modelo “socialização legal por meio da justiça procedimental” (
Mais recentemente, tanto a abordagem da legitimidade quanto a da socialização legal passaram a ser testadas em contexto brasileiro. Nesse caso, como em outras culturas acadêmicas, as pesquisas focalizam, principalmente, as experiências da população adulta com as polícias e com o sistema de justiça. Ainda que os dados entre adultos apresentem similaridades com o contexto internacional, principalmente o anglo-americano, as pesquisas realizadas no Brasil não deixam de considerar especificidades desta sociedade. Em pesquisa realizada a partir de um
Entre adolescentes brasileiros, o Estudo da Socialização Legal em São Paulo, conduzido pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, reúne algumas evidências sobre o papel da legitimidade no processo socializador. Com uma base de dados de aproximadamente 800 adolescentes com idade entre 11 e 14 anos, as análises estatísticas focalizaram até o momento como a legitimidade da autoridade familiar (
Assim, tendo apresentado como os estudos acima mencionados abordam a questão da socialização legal a partir do olhar para os adolescentes e adultos em geral, o próximo tópico irá abordar o campo dos estudos sobre adolescentes e ato infracional no Brasil, a partir da sociologia da violência e da punição.
A literatura a respeito do adolescente em situação de conflito com a lei, no campo da sociologia, é formada majoritariamente por pesquisas qualitativas. Com estudos aprofundados a respeito da legislação (cf.
A partir de pesquisas realizadas no sistema de justiça de São Paulo, questões importantes a respeito do funcionamento das práticas judiciais foram identificadas.
Além da centralidade da figura do juiz para o andamento e para os ritos processuais, os estudos identificam a grande informalidade que marca o que acontece nas audiências nas VEIJs (
O papel do Ministério Público na produção das decisões judiciais nas VEIJs é analisado por
Essas pesquisas mostram, em resumo, a efemeridade e as linhas de montagem típicas do sistema de justiça criminal (
Buscando aprofundar a discussão da socialização legal já existente no Brasil, a presente pesquisa buscou investigar um público que já possui contato com o sistema de justiça juvenil. Os participantes foram selecionados por meio de uma amostra por conveniência, considerando as dificuldades de se obter autorização para conversar com esse público específico. Optou-se, em um primeiro momento, em fazer contato com as entidades executoras de medidas em meio aberto no município de São Paulo a partir de contatos pré-existentes.
Foram contatadas três instituições responsáveis pela execução das medidas socioeducativas: o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) – região Sapopemba, o Centro Social Santo Dias – região Oeste – e a Coordenação Regional de Obras de Promoção Humana (CROPH) – região Norte. O Cedeca Sapopemba aceitou a realização da pesquisa de campo a partir do segundo semestre de 2019, considerando que já estavam sendo objeto de estudos de outros pesquisadores. O Centro Social Santo Dias não deu uma devolutiva final, uma vez que, no momento do contato, a coordenadora responsável pela gerência do serviço estava de férias. Por último, foi realizado contato com a gerente do serviço CROPH e, depois da aceitação do Centro de Referência de Assistência Social (CREAS) Zona Norte, iniciamos a pesquisa em um serviço específico administrado pela CROPH
Vale informar que a municipalização das medidas socioeducativas já constava na Resolução nº 113, de 2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (
Em São Paulo, essa municipalização, que teve início em 2004 e foi concluída em 2008, deu-se por convênios firmados entre a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) e organizações da sociedade civil. A SMADS criou Núcleos de Proteção Psicossocial Especial (NPPE) para atendimentos dos adolescentes conforme sua região de moradia, e o CREAS da região é o responsável por supervisionar as atividades das organizações (
A municipalização reconhece o ente municipal como o principal responsável pela coordenação, planejamento, acompanhamento, controle e avaliação das políticas públicas em seu território (
Para compreender um pouco melhor o território de onde provêm os adolescentes que entrevistamos, vale apontar que, de acordo com o Mapa da Desigualdade (
Em relação à educação disponibilizada pelo Poder Público, vemos o tempo médio de espera para uma vaga em creche em São Paulo de 106,9 dias, enquanto em Guaianases – com o menor tempo – a espera chega a 18,5 dias e em Vila Andrade – com o maior tempo – de 260,94 dias. No território analisado, o tempo de espera chega a 107,38 dias, portanto, maior que a média da cidade de São Paulo, ao mesmo tempo que 96,79% dos inscritos para vagas nos estabelecimentos conseguem a matrícula, enquanto a média de São Paulo chega somente a 92,7%.
Em relação aos equipamentos para acesso à cultura e lazer, o território não possui nenhum centro cultural, casa ou espaço de cultura, tampouco equipamento público de cultura. Cinemas, museus, bibliotecas infantojuvenil e adulta, salas de
As observações participantes ocorreram durante as terças-feiras dos meses de novembro e dezembro de 2019 e janeiro de 2020, momento em que ocorriam as oficinas do “projeto corte”. Tais oficinas ensinavam os adolescentes a cortar cabelos masculinos, um curso com o intuito de formar, tecnicamente, os adolescentes em “barbearia”. O Professor Carlos
Vale ressaltar que as observações foram importantes para conseguir manter contato com os adolescentes e alcançar
A observação participante pressupõe um processo longo de aproximação com o campo. No caso desta pesquisa, isso não foi diferente. As observações nas oficinas foram realizadas por 10 (dez) semanas antes de iniciarmos as entrevistas. Optamos por não fazer um roteiro que guiasse a observação, mas de irmos a campo com algumas questões em mente para serem observadas durante o acompanhamento das oficinas que nos ajudariam, depois, a pensar nas entrevistas em profundidade, focando no episódio de vida pelo qual os adolescentes estavam passando. O tempo, na observação participante, é pré-requisito, já que é necessário observar, durante um longo período, os interlocutores, de modo a compreender seus comportamentos (Foot-Whyte, 2005, p. 320).
Tentamos, a partir das observações: (i) compreender as relações que os adolescentes mantinham com seus pares; (ii) entender as relações que os adolescentes mantinham com os(as) técnicos(as) do SME-MA; (iii) observar as relações que os(as) técnicos(as) mantinham entre si; (iv) entender qual o contexto cultural/estético dos adolescentes (músicas, vestimentas, tatuagens, bijuterias), e, por fim, (vi) os assuntos que surgiam entre eles e que perduraram durante a oficina.
Houve certa resistência por parte dos adolescentes em conhecer melhor a pesquisadora, muito em razão da desconfiança de a pesquisadora estar ligada, de alguma forma, ao Poder Judiciário. Vale dizer que, quando explicamos que éramos pesquisadoras de uma universidade pública em São Paulo, o termo “universidade” pareceu algo fora de contexto. Considerando serem adolescentes em fase de realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ficou clara a distância deles dos demais jovens da mesma idade, considerando que depois aprenderíamos que eles estavam desescolarizados
Considerando que a imersão total não existe, conforme referiu Foot-Whyte, a diferença marcante entre as relações dos pesquisados e dos pesquisadores deve ser mantida e afirmada, a todo tempo (2005, p. 301). Perdemos a conta de quantas vezes tivemos que reafirmar que não éramos parte do serviço de medidas, tampouco alguém com relações junto ao Poder Judiciário, já que a desconfiança sempre ganhava espaço, com frases questionando o porquê do interesse na vida deles. Contudo, ao fim, a diferença que afirmou nossa relação era o que interessava aos adolescentes e a nós mesmos.
Ao longo do tempo, tornou-se nítido que a observação participante não é algo simples, mas repleta de dilemas metodológicos e teóricos. Uma das coisas mais interessantes que ocorreram, durante as observações, foi o fato de que, ao longo das semanas, ficou claro quando podíamos fazer determinada pergunta e quando não fazer esta mesma pergunta. Entendemos que falar com um dos adolescentes no meio dos seus pares só faria sentido se houvesse espaço aberto para isso. E, apesar das referências apontarem para a necessidade de tomar notas durante as observações, optamos por fazê-las depois, já fora do serviço, considerando a necessidade de não
Após algumas semanas realizando as observações, optamos por iniciar as entrevistas com os adolescentes. Justificamos a utilização de entrevistas em razão de que tal técnica nos permite incorporar, a partir dos próprios interlocutores, suas histórias e seus discursos a partir de seus próprios olhares. Como são vários tipos possíveis de entrevistas, optamos por utilizar aquela que se refere ao conceito de “episódio”. De acordo com Flick (2002, p. 115), o conceito de entrevista episódica pode ser buscado na psicologia, entendida como o modo pelo qual a narrativa das pessoas constitui um instrumento para a coleta de informações e, no campo mais geral das ciências sociais, em que a experiência e a vida da pessoa que está sendo entrevistada são construídas a partir da narrativa (p. 116). Para Flick, são necessários alguns passos para que a entrevista siga em direção ao objetivo, qual seja, analisar o conhecimento cotidiano do entrevistado sobre o tema – e, nesse caso, sobre a própria socialização legal do adolescente – para que se possa comparar os conhecimentos dos entrevistados de diferentes grupos sociais (p. 118) – como os adolescentes da amostra do SPLSS.
No que refere à especificidade da entrevista episódica, ela é considerada mais criteriosa, uma vez que deixa o pesquisado livre para narrar alguma experiência. A subjetividade é satisfeita na entrevista episódica, uma vez que traz implicações afetivas e carregadas de valor (
Uwe Flick apresenta três situações que podem ser percebidas quando da realização da entrevista episódica: (i) episódio, em que o entrevistado recorda de alguma situação vivida; (ii) episódio repetido, situações da vida do entrevistado que se repetem durante sua biografia; e (iii) situações históricas, em que o entrevistado narra algum evento específico de sua vida (p. 131). Os dados gerados pela entrevista podem ser resumidos em cinco tópicos diferentes: (i) narrativas de situação; (ii) episódios repetidos; (iii) exemplos; (iv) definições subjetivas; e (v) proposições argumentativo-teóricas (p. 132).
No total, foram feitas oito entrevistas: quatro delas com adolescentes e quatro com técnicos(as) do serviço de medidas. Dada a natureza exploratória da pesquisa e o tamanho do serviço pesquisado, consideramos que essa amostragem é suficiente para ter indícios de como esse público avalia sua relação com as leis e as autoridades
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da coleta de todos os dados, foi possível angariar pistas sobre como se dá o processo de socialização legal de adolescentes em situação de conflito com a lei. Em primeiro lugar, ressalta-se que o perfil socioeconômico e escolar dos adolescentes já é bastante conhecido: são adolescentes pobres, pretos ou pardos, moradores de zonas pobres e periféricas do município e, no caso dos entrevistados, todos desescolarizados.
Ressalta-se que, nas conversas com os(as) técnicos(as) que atendem e acompanham os adolescentes no cumprimento de suas medidas, foi possível perceber também quem são estes adolescentes. A técnica L*, por exemplo, que acompanhava, à época, 15 adolescentes, disse que:
.... L*: São meninos. Os que eu atendo são meninos de 16 a 18. Eu atendo só uma menina, que tem 17 também. Mas são meninos, no geral, são meninos de 16 a 18, com escolaridade muito baixa, muito fora da faixa etária deles. Geralmente no ensino fundamental ainda, 7ª série, 6ª série, 8ª série. São meninos negros. M*, outra técnica também responsável pelo atendimento de 15 adolescentes, informa, em relação ao perfil, que: M*: A maioria é meninos, a faixa etária, atualmente, porque eu observo que isso muda, atualmente estou atendendo meninos de 15 até 18 anos. De 12 eu não tenho nenhum no momento. 13 e 14 também não, é de 15 a 18. Meninos, a maioria é tráfico, e a maioria passou pela Fundação Casa, esteve internado.
Outro dos técnicos entrevistados, J*, ao se referir ao perfil dos adolescentes, vai mais além:
J*: A maioria dos meninos são meninos que moram em comunidade, baixa escolaridade, mal são alfabetizados, geralmente existe uma questão de serem de pais separados. Sempre tem um conflito muito grande familiar e vivem em regiões bem de violência, de violência tanto de violações de direito, tanto de violência policial e de todo tipo de violência mesmo.
Além do mais, a partir da análise preliminar das entrevistas, foi possível perceber que existe uma total falta de entendimento por parte dos adolescentes do que são e para que servem as autoridades e as leis. Em alguns momentos, por exemplo, tivemos que refazer as perguntas sobre leis das mais variadas formas, de modo que o adolescente entrevistado pudesse compreender o que estávamos querendo dizer quando falávamos sobre o cumprimento e a criação das regras legais.
A falta de entendimento sobre o papel da audiência na definição da medida de LA e PSC apareceu em todas as entrevistas conduzidas com os adolescentes, evidenciando a ausência de clareza por parte das autoridades. Exemplos dessa incompreensão podem ser vistos nas falas de B* e JV*, a seguir.
B*: Estava julgando nós, né? Estava a testemunha, lá, o policial, e estava o juiz. Eu nem sei explicar muito. Eu sei, o juiz era fechadão. Para mim ele ia me internar, o juiz. Ele me deu esse negócio aí para mim sair, para os outros dois moleque ele deu internação.
Já o adolescente JV*, ao relatar o procedimento judicial e a oitiva informal, diz o seguinte:
JV*: Não tinha que ter falado nada, ele só tinha que me escutar, o primeiro juiz, então ele me escutou, só colocou a câmera virada e me escutou, agora, antes do juiz eu passei pelo promotor, promotor já é arrogante, eu cheguei lá e ele leu o relatório lá, falou que eu estava com tanto de droga, tanto de dinheiro, eu fui explicar para ele, não, eu não estava com a droga, eles pegaram, na delegacia, me forjou. Ele ficou bravão, tá ligado? Fechou o livro. Estava eu e minha mãe: aqui você tem direito de mentir ou de falar a verdade, você vai ficar mentindo na minha cara? Eu falei: eu estou falando a verdade, senhor. Ele: ah, é? Tá falando a verdade? Você vai ter dor de cabeça, quer dor de cabeça? Você vai ter dor de cabeça. Vai lá falar com o juiz lá. Aí eu fui lá falar com o juiz, aí o primeiro juiz ele ficou quieto, me escutou, o segundo já conversou comigo, aí eu expliquei pra ele e ele falou: então tá bom. E aí perguntou pra minha mãe como que eu era em casa, meu comportamento e tal, juiz.
Além disso, a respeito do procedimento de apuração do ato infracional pelo qual, obrigatoriamente, todos os adolescentes entrevistados passaram, foi percebida a ausência de entendimento sobre o que havia acontecido de fato. Isso significa dizer que não existia compreensão, por parte dos interlocutores, a respeito do que havia acontecido naqueles espaços. Por exemplo, ao perguntarmos para V* sobre se ele fazia ideia do que havia acontecido na sala de audiência, ele respondeu que “não fazia ideia”.
Em vários momentos, quando perguntados sobre o que tinha acontecido, os adolescentes diziam frases como “foi aquilo lá”, “aquilo lá no Brás”. Quando insistimos a respeito da presença de defesa nesses espaços, um dos adolescentes referiu ao Defensor Público como “era branquinho e legal”:
JV: [...] Explicou, minha mãe estava chorando pensando que eu ia ficar preso lá, ele falou, acalmou minha mãe, falou que eu não ia ficar preso, que isso aí ia só para audiência.
Importa mencionar que era naquele espaço – da audiência de continuação – que os adolescentes tiveram suas trajetórias de vidas alteradas para que iniciassem o cumprimento das medidas socioeducativas impostas – e, conforme já dito, isso ficou bastante nebuloso em suas visões.
Os adolescentes entrevistados, além do mais, deixaram claro que não entendiam por qual motivo estavam naquele equipamento municipal cumprindo medida, tampouco compreenderam quem eram e quais os papéis desempenhados pelos atores do sistema de justiça (juiz, promotor e defensor público) nas audiências de que participaram. Isso indica que não há uma efetiva preocupação de que os adolescentes façam parte de seus próprios percursos e de que sejam verdadeiros sujeitos desse processo, apontando para a falta de interesse do Poder Público em modificar certas realidades, principalmente em relação às disposições, atitudes e comportamentos legais desses jovens.
Ao contrário, em relação à polícia e ao modo como foram apreendidos, esse aparece como um importante momento na trajetória dos adolescentes entrevistados. Não só em relação ao ato infracional cometido, mas pelas abordagens que já haviam sido realizadas durante suas trajetórias de vida, o que aparece nas falas de todos os adolescentes entrevistados. Além de apontarem para o racismo e a violência efetuados pelas forças policiais no momento da apreensão, também informaram que existe uma pré-seleção já desenhada pela instituição, que “sempre vai atrás de preto e pobre” (trecho entrevista B.).
B: Querendo ou não, vê assim você o maior brega assim, nem sabe quem você é já vem já te xingando, te maltratando e nem conhece a sua pessoa. Já tem uns policiais que já conhece, que já troca uma ideia suave. B: Já me bateram já. Quase me mataram já, senhora. Eu estava de moto, meu parceiro tem uma moto, ele faz umas entregas, eu estava indo com ele na empresa, caí ali no terminal de cargas, aí nós passamos pela viatura tranquilo, fazer as entregas, daí veio logo a força tática atrás, a gente não tentou fugir, nada, deu seta, polícia estava tudo cheirado os policial. Agredindo, falando que nós estava roubando, aonde que eu tinha dispensado o celular. Se eu não tinha pegado nem um celular, nada. Já veio agredindo. Para nós soltar o que nós não tinha feito. Daí ele me colocou assim no chão, no meio do mato: faz o seu último pedido, colocou o bagulho na minha cabeça, falando que ia me matar. Eu falei, não preciso disso aí não, não fiz nada de errado, não. O cara é foda, tem uns que não vai com a sua cara, os caras maltratam muito.
Contudo, quando questionados a respeito do papel que a polícia desempenha na sociedade, de maneira em geral, apontam para a necessidade da existência dessa força de segurança, já que “tem que cuidar das coisas” (trecho entrevista JV*). A relação estabelecida com as autoridades policiais, portanto, indica contradição na forma de enxergar a instituição.
B: Eles fazem o serviço deles, têm que fazer o serviço deles, tem uns que já quer encostar a mão, eles não podem encostar a mão. E aí depois que você vai xingar, você vai preso por desacato. Tem que ficar quieto. Tem nego que mora lá, eu não fico perto não, senhora. JV: Ah, sei lá. Tem uns policiais que são suave, mas tem uns policiais que são safado, que querem ficar batendo nos moleques só porque têm tatuagem. Não é porque eu tenho tatuagem que eu sou bandido, eu tenho tatuagem, mas eu vou entregar panfleto, o que eu fiz no passado não quer dizer nada do que eu sou hoje. JV: Não, até então porque eu queria ser polícia quando eu era menor, tem policial que faz o serviço dele, tem muito policial que é Força Tática, Rota, que é um patamar mais que polícia militar já é mais humilde. Agora os caras da Pálio, os caras já querem bater, mostrar serviço.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que os adolescentes reconhecem o papel da instituição como garantidora de uma ordem ou da segurança das pessoas, ou seja, reconhecem sua justificativa normativa, percebem uma atuação prática que é seletiva e muitas vezes racista. Há, então, uma discrepância entre o que a instituição é e o que ela deveria ser, e essa discrepância é notada pelos adolescentes. Uma reflexão importante decorrente disso é como essa percepção de distância entre a norma e a realidade pode impactar os comportamentos futuros desses adolescentes, e suas disposições em confiar ou recorrer a essa instituição no futuro.
Nesse sentido, vale analisar a fala dos(as) técnicos que acompanham os adolescentes e como eles enxergam a relação dos meninos com a polícia. Exemplo disso é a fala de J*, que evidencia a violência praticada pelos policiais nesta periferia específica de São Paulo:
.... J*: A relação é bem violenta. Os policiais tendem sempre a abordar os meninos, por mais que já foi [sic] abordado mais de duas, três vezes. E já sabendo ocorre a abordagem, muitas vezes aqui na porta, eles pegam o bilhete. Todo tipo de violência que muitas vezes, se a gente está perto ainda a gente consegue diminuir um pouco isso, mas às vezes os meninos quando está uma pressão bem forte naquela comunidade eles não conseguem nem chegar para os atendimentos, porque não conseguem sair, se sair vai levar esculacho, vai levar porrada, então, com isso eles evitam. E quando acontece isso é impressionante, os meninos eles me falam, e aí você já sabe de um, já sabe de outro, então já sabe que o outro não vai vir por causa disso mesmo, porque já houve todo um contato com a gente mesmo. A coisa está pegando e não dá para a gente ficar saindo, mas é uma frequência bem forte mesmo. ....
M*, outra técnica no serviço, menciona o perfil de meninos que é abordado pela polícia, já que:
M: Ah, pobre, negro, periférico, passou pela Fundação Casa. Já tem um carimbo. Passou pela Fundação Casa. A forma como foi trabalhado o processo do ato infracional é uma repressão, é um medo, faz com que os meninos aqui fora, as famílias, os meninos não teve respaldo nenhum como seria o trabalho deles, como seria a atuação deles aqui fora, para não ir para o sistema. Não voltar para o sistema novamente. Isso quando não é interrompido também pela, por uma execução. Por uma violência policial que a vida já não está mais aqui, vai embora [...]
Ainda em relação a isso, L* menciona que existe uma diferenciação entre as abordagens na periferia e fora dela:
L*: Existe diferenciação. Aqui os meninos são negros, eles têm o estereótipo da roupa da periferia, do funkeiro, eles curtem a cultura do funk. Então entra tudo nessa panela de preconceito. Mas eu não tenho ouvido relato de abordagem policial muito forte, muito violenta. Agora não sei se é porque eles não estão contando, porque eles que já meio que naturalizaram esse tipo de abordagem policial ou se não está acontecendo. Que pode ser uma coisa ou outra.
Em pesquisa com adolescentes da cidade de São Paulo,
A socialização legal, enquanto um campo de pesquisa consolidado em alguns países do norte global, tem ajudado a pensar as relações que se estabelecem entre os agentes que devem fazer a lei ser cumprida e os adolescentes que, por alguma razão, se encontram em conflito com a lei e já se relacionaram de alguma forma com várias autoridades – no caso dessa pesquisa específica, com autoridades policiais e aquelas do sistema de justiça juvenil. Assim, muito embora o campo da socialização legal, de forma geral, tenha explorado pouco as potencialidades da metodologia qualitativa junto aos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional (
Conforme já adiantado na introdução deste trabalho, as pesquisas na área das ciências sociais, principalmente a do campo da sociologia da punição, tende a analisar a relação dos adolescentes com o mundo do crime a partir da execução das medidas socioeducativas e das dinâmicas do sistema de justiça (cf.
Nesta pesquisa específica, foi possível angariar pistas sobre como se dá o processo de socialização legal de adolescentes infratores e com um perfil socioeconômico bastante conhecido: pobres, negros e moradores de regiões periféricas. O campo da socialização legal pode ajudar a pensar as relações que se estabelecem entre os agentes que devem fazer a lei ser cumprida e os adolescentes que, por alguma razão, já descumpriram a lei. Entretanto, explora pouco as potencialidades da metodologia qualitativa junto aos adolescentes que já se encontram em situação de conflito com a lei (
Foi percebido, em resumo, que existe falta de entendimento, por parte dos adolescentes, do que são e para que servem as autoridades e as leis. Além da indicação de que não há, por parte das autoridades, uma preocupação efetiva de que os momentos de encontro se tornem momentos de aprendizado para os adolescentes, há pistas de que não há interesse de que os adolescentes se tornem sujeitos de suas próprias trajetórias. A literatura em socialização legal tem destacado como os momentos de aprendizagem podem ter funções diferentes a depender do modo como as autoridades socializadoras os conduzem: ora informando e demonstrando a validade do ordenamento legal, ora ressaltando as seletividades e vieses desse mesmo ordenamento (
Versão preliminar deste artigo foi apresentada no Grupo de Trabalho nº 21 – Infâncias, Adolescências e Juventudes – pesquisas acadêmicas e políticas públicas, do 44º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).
Optou-se por não identificar o serviço, de modo a não expor nem os técnicos nem os adolescentes com os quais esta pesquisa foi realizada.
Não colocaremos os nomes verdadeiros das pessoas com as quais conversamos, de modo a manter suas privacidades resguardadas.
Optamos por utilizar o termo “desescolarizados” para caracterizar adolescentes que estão fora da escola, mas que já a frequentaram. Isso significa dizer que um adolescente com 17 anos, por exemplo, está ou fora da escola ou em série inferior à sua faixa etária.
O serviço contava, à época, com quatro técnicos(as), que atendiam aproximadamente quinze adolescentes. Nas oficinas de cabeleireiro, compareciam em média 10-15 adolescentes. Vale destacar que o trabalho de campo teve de ser interrompido por conta da pandemia do novo Coronavírus e das medidas de distanciamento social. A princípio, as pesquisadoras realizariam entrevistas com mais adolescentes do serviço, além da realização de um grupo focal, de modo a observar se houve outros tipos de experiências que não apareceram nessas quatro entrevistas coletas.