Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Direito Constitucional e Processo Constitucional da Universidade da Região de Joinville (Univille).
Advogada. Especialista
O artigo objetiva investigar o processo de concretização dos textos de normas que regulam a busca pessoal por fundada suspeita, nos termos dos arts. 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal. Metodologicamente, procura-se analisar esse tipo de abordagem policial, à luz da teoria estruturante do direito, da metódica estruturante do direito, da Constituição Federal de 1988, da doutrina e da jurisprudência. Neste contexto, a pesquisa apresenta dados que evidenciam disparidades raciais na realização de abordagens policiais seguidas de revista pessoal. Ato contínuo, a pesquisa destaca a teoria da norma de Friedrich Müller, capaz de incorporar dados reais relevantes para a concretização da busca pessoal por fundada suspeita, visando sanar vícios de fundamentação que perpetram a seletividade da criminalização secundária de grupos social e racialmente marginalizados. Finalmente, o trabalho apresenta uma proposta de aplicação prática da teoria e da metódica estruturante do direito, relativamente aos arts. 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal. Conclui-se que a concepção de norma jurídica de Friedrich Müller pode auxiliar na construção de parâmetros objetivos para a fundamentação de busca pessoal por fundada suspeita, especialmente por meio da filtragem dos dados da realidade pelo âmbito normativo.
The following research seeks to investigate the process through concretizing the juridic norm that regulates stop and frisk procedures, provided in articles 240, § 2º, e 244, of the Brazilian Criminal Law Procedure Codex. Methodologically, the article intends to analyze this type of law enforcement approach, considering the structuring legal theory, the structuring method, the 1988’s Federal Constitution, the doctrine and jurisprudence of the United States of America, as well as Brazilian jurisprudence and doctrine. In this context, the research presents pieces of evidence of biased racial disparities in police approaches. The research highlights Friedrich Müller’s norm theory, which incorporates relevant real data to the concretization of the juridic norm. Müller’s norm theory seeks to remedy flaws in reasoning that perpetrates the selectivity of the secondary criminalization of social and racially marginalized groups. Finally, the research proposes a practical approach from the structuring legal theory and methodic, concerning articles 240, § 2º, e 244, of the Brazilian Criminal Law Procedure Codex. In conclusion, the Friedrich Müller’s conception of a juridic norm can assist the construction of objective standards in reasoning the reasonable suspicion, especially through filtering reality data by the normative domain.
SUMÁRIO: Considerações iniciais; 1 Buscas pessoais, desigualdade e ineficiência: a experiência brasileira; 2 A teoria estruturante do Direito de Friedrich Müller; 3 Aplicação prática da teoria e da metódica estruturante do Direito: busca pessoal por fundada suspeita; 3.1 A formulação do programa da norma; 3.2 A formulação do âmbito normativo: “fundada suspeita”; 3.3 A norma jurídica: parâmetros mínimos para a concretização de “fundada suspeita”; Conclusões; Referências.
O objetivo do presente artigo é, por meio da metódica estruturante do direito, formulada por Friedrich Müller, investigar as exigências normativas para a concretização da busca pessoal por “fundada suspeita”, nos termos dos arts. 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal. Alegações genéricas de “atitude suspeita”, “indivíduo suspeito”, “situação suspeita” e “área de criminalidade” cumprem as exigências previstas para a realização da medida?
Frise-se, desde logo, que refoge ao cerne do presente artigo realizar um inventário do significado de “fundada suspeita”, à luz da tradicional doutrina processual penal. O artigo também não pretende apresentar “todos os significados possíveis” de “fundada suspeita”, tal como
A justificativa quanto à temática abordada desdobra-se em três aspectos. Primeiramente, em razão da inequívoca ambiguidade do termo “fundada suspeita”. A ambiguidade é uma propriedade que possui diversas unidades linguísticas (palavras, locuções, frases) de significar coisas diferentes, permitindo mais de uma leitura. Na lição de Guastini, às vezes o texto normativo é ambíguo: nos perguntamos se expressa N1 ou N2 (
Por segundo, em razão da notória inter-relação entre buscas pessoais por fundada suspeita, tráfico de drogas e privação da liberdade. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, até junho de 2019 o Brasil possuía 773.000 (setecentos e setenta e três mil) presos, dos quais 253.963 (duzentos e cinquenta e três mil novecentos e sessenta e três) eram presos provisórios (
Por terceiro, se a norma jurídica e a norma de decisão não estão prontas, é necessário discutir o processo de sua elaboração. Isso passa obrigatoriamente por criar padrões e mecanismos para organização dos argumentos. Na lição de Rodriguez, “uma segurança jurídica construída em novos termos estará preocupada principalmente com a dimensão argumentativa” (
Os objetivos específicos da pesquisa podem ser apresentados a partir da estrutura do artigo. Na primeira seção, apresentar-se-ão algumas informações sobre a realização de buscas pessoais e prisões em flagrante em Estados e Municípios brasileiros, dados sobre graus de evidência entre os flagrantes por tráfico de drogas e aqueles decorrentes de outros crimes, bem como o impacto da prescrição de políticas de “tolerância zero” ou “lei e ordem” na realização de buscas pessoais por fundada suspeita. Na segunda seção, será abordada a teoria estruturante do direito, formulada por Friedrich Müller. O objetivo é compreender a estrutura da norma jurídica proposta pelo constitucionalista de Heidelberg. Na terceira seção, com amparo na teoria e na metódica estruturante do direito, buscar-se-á apresentar uma proposta de concretização normativa dos arts. 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal. Essa seção leva a sério a crítica de Virgílio Afonso da Silva acerca dos trabalhos científicos sobre interpretação. É preciso superar os estudos que se reduzem à mera catalogação de distintos métodos em longas exposições teóricas; há a necessidade da demonstração da aplicabilidade dos métodos jurídicos (
No que tange à metodologia, a natureza da pesquisa é pura, visando à compreensão da aplicabilidade da teoria estruturante do direito para a construção da norma jurídica de busca pessoal por fundada suspeita. Quanto à abordagem do problema, trata-se de estudo qualitativo amparado pela interpretação do conjunto de normas que versam direta ou indiretamente sobre busca pessoal por fundada suspeita. O método de abordagem foi o indutivo crítico, capaz de avaliar e refutar argumentos assaz utilizados para a realização indiscriminada de buscas pessoais por fundada suspeita. O método de interpretação foi primordialmente sistemático, ao se analisar as normas jurídicas acerca do tema. Quanto aos procedimentos técnicos, a pesquisa privilegiou documentos judiciários, a legislação nacional e a doutrina especializada, nacional ou estrangeira.
Conforme previamente noticiado, milhares de sujeitos são presos anualmente por conta do procedimento de busca pessoal por fundada suspeita e o consequente flagrante por crime de tráfico de drogas. O efeito cascata se traduz em inúmeros
A discussão sobre a necessária motivação do ato administrativo de busca pessoal por fundada suspeita ganha contornos ainda mais dramáticos pelo risco de reproduzir “práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural”, nos dizeres do Ministro Rogério Schietti Cruz, no julgamento do
Em investigação empírica realizada por Pedro Machado de Melo Romano e Bráulio Figueiredo Alves Silva, com base nos dados coletados em audiências de custódia realizadas em Belo Horizonte, entre setembro de 2015 e março de 2016, constatou-se que “a população segregada por meio do flagrante delito é composta majoritariamente por jovens de periferia, na maioria homens, pretos e pardos, solteiros e de baixíssima escolaridade” (
Essa discussão torna-se ainda mais importante em períodos eleitorais, quando reiteradamente surgem candidatos propondo a adoção de políticas de “tolerância zero” ou de “lei e ordem”. A base dessas políticas, que inequivocamente possuem aprovação em determinados setores da sociedade, reside na repressão em massa e no encarceramento. Um dos principais elementos da política de tolerância zero são as abordagens policiais para “parar e revistar” (em inglês,
os enquadros se dirigem desproporcionalmente aos rapazes negros moradores de favelas dos bairros pobres das periferias. [...] os policiais tendem a enquadrar mais pessoas jovens, do sexo masculino e de cor negra não apenas como um fruto da dinâmica da criminalidade, como resposta a ações criminosas, mas como um enviesamento no exercício do seu poder contra esse grupo social independentemente do seu efetivo engajamento com condutas ilegais, por um direcionamento prévio do controle social na sua direção.
Conforme se verá adiante, a legalidade das abordagens policiais passa necessariamente pela construção da norma jurídica decorrente dos textos normativos previstos no Código de Processo Penal e na Constituição Federal. Nesse sentido, a teoria e a metódica estruturante do direito podem servir como um norte, ao estabelecer
A teoria da norma jurídica de Friedrich Müller, adotada como base do presente artigo, está ancorada no princípio cardeal de que a norma jurídica não se identifica ao texto de norma. O texto normativo é considerado o “conteúdo da disposição”, uma forma preliminar (
No processo de concretização, a norma jurídica é desenvolvida e impulsionada pelas circunstâncias reais, a partir do programa da norma (
É necessário enfatizar que o programa normativo é codeterminado pelas circunstâncias do caso. São as circunstâncias do caso que guiam o operador do Direito a trabalhar com determinados textos de normas em detrimento de outros. O programa normativo, uma vez investigado e formulado, assume uma forma textual e será o condutor do processo de concretização. Todas as fontes mencionadas
Já o âmbito normativo (
O âmbito normativo é o resultado da mediação entre o programa normativo e os elementos materiais empiricamente investigados (
O debate acerca da atribuição de significado à expressão “fundada suspeita” não é novidade no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. No Supremo Tribunal Federal,
A concretização dos arts. 240, § 2º, e 244, ambos do Código de Processo Penal, passa pela necessária filtragem constitucional (
Como visto alhures, os cânones clássicos de interpretação servem para a formulação do programa da norma. Neste contexto, nota-se que uma interpretação meramente gramatical pouco contribui para a adoção de critérios objetivos na delimitação de “fundada suspeita”. Aury Lopes Jr. é assertivo ao tratar do tema: “Mas o que é ‘fundada suspeita’? Uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial” (
Em princípio, devem ser considerados os seguintes dispositivos normativos para a formulação do programa da norma: (i) art. 240, § 2º, do CPP: “Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras
No âmbito da Constituição Federal, devem ser cogitados os dispositivos normativos que versam sobre liberdade, igualdade, legalidade, devido processo legal, proibição do racismo e de todas as formas de discriminação, vedação da utilização de provas obtidas por meios ilícitos e inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Assim, devem ser considerados: (iii) art. 3º, inciso IV, da CF/1988: “[...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (
Uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico aponta para a impossibilidade de abordagens policiais cuja raiz radique no racismo e na aporofobia. Os arts. 3º, inciso IV, 4º, inciso VIII, e 5º,
Além disso, podem compor o programa da norma enunciados da jurisprudência, na medida em que o texto de norma é apenas o ponto de partida do processo de concretização. Assim, afigura-se pertinente a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça acerca da validade da busca e apreensão domiciliar realizada em flagrante de crime de tráfico de drogas. Invariavelmente, são situações em que um suspeito vê a Polícia Militar ingressar em sua residência, albergada pela exceção à inviolabilidade do domicílio, disposta no art. 5º, inciso XI, da CF/1988, em caso de flagrante delito. A jurisprudência e a doutrina pátria entendiam, até recentemente, que, por ser o tráfico de drogas um crime de natureza permanente, no qual a consumação se protrai no tempo, estaria autorizado o ingresso em domicílio alheio a qualquer momento e sem necessidade de autorização judicial ou consentimento do morador, o que decorreria de uma interpretação literal do permissivo constitucional, que alude a “flagrante delito” entre as hipóteses de ressalva à inviolabilidade domiciliar.
Porém, o Supremo Tribunal Federal aperfeiçoou esse entendimento, a partir do julgamento do RE 603.616/RO (
A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas Na ocasião, o Ministro Relator Gilmar Mendes aduziu que provas ilícitas, informações de inteligência policial – denúncias anônimas, afirmações de “informantes policiais” (pessoas ligadas ao crime que repassam informações aos policiais, mediante compromisso de não serem identificadas), por exemplo – e, em geral, elementos que não têm força probatória em juízo não servem para demonstrar a justa causa.
Tais preocupações se potencializaram a partir do dado, já mencionado, de que a maior parte das prisões relativas ao crime de tráfico de drogas decorre de flagrantes realizados no policiamento ostensivo das ruas e não de investigações policiais.
Em 02.03.2021, foi a vez de o Superior Tribunal de Justiça firmar entendimento atualizado sobre o mesmo tema. Sob relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, no julgamento do HC 598.051/SP, a Corte definiu que “as circunstâncias que antecederem a violação do domicílio não podem derivar de simples desconfiança policial, apoiada,
Como se sabe, a utilização da analogia é prática inerente ao Direito (
Finalmente, a interpretação gramatical e sistemática dos textos normativos dos arts. 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal é suficiente para impedir a prática disseminada de realização de buscas pessoais aleatórias, nos termos das políticas de “lei e ordem” e “tolerância zero”. O art. 244 é claro ao estabelecer que a busca pessoal sem mandado deve decorrer de “fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito” (
A partir da análise conjugada das circunstâncias do caso e dos potenciais textos normativos aplicáveis ao caso, deve ser realizada a formulação do âmbito normativo. Os elementos gramatical e sistemático, bem como a jurisprudência, que ajudaram na formulação do programa da norma, apontam para a necessidade de inserção de dados reais na estrutura da norma. Argumentos e pontos de vista fáticos autorizados pelo programa normativo devem compor o âmbito normativo. Nesse norte, também é possível perquirir dados que não podem compor o âmbito normativo de “fundada suspeita”. Em síntese, existem elementos de fato que não podem ser utilizados para a fundamentação constitucionalmente adequada de “fundada suspeita”, no âmbito do trabalho realizado por agentes do Estado.
O programa da norma demonstra a impossibilidade de que a “fundada suspeita” esteja baseada em critérios subjetivos, o que engloba, por óbvio, critérios raciais, de cor da pele, de
Em consequência, podem compor a norma de decisão estudos que indiquem um tratamento não isonômico na realização de abordagens ou prisões em flagrante. Esses dados da realidade devem ser sopesados pelo Poder Judiciário, quando da análise dos flagrantes realizados pela autoridade policial, especialmente quando as justificativas apresentadas forem vagas e/ou capazes de indicar um perfilamento racial.
Extenso estudo conduzido pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (
A análise da doutrina e da jurisprudência norte-americana é salutar para a apreensão de
A fundamentação “área conhecida pela criminalidade” praticamente garante que a “suspeita razoável” irá atingir desproporcionalmente minorias socioeconomicamente desfavorecidas. Empiricamente, uma minoria jovem e negra tem muito mais probabilidade de residir em uma “área de criminalidade” ou estar nas “proximidades de um crime” do que jovens brancos (
Finalmente, algumas cortes estadunidenses apontam que requisitos para abordagem que se refiram a “comportamento evasivo” e “fuga” impactam minorias de forma distinta. Por uma diversidade de razões – muitas delas legítimas –, as minorias tendem a temer e a não confiar na polícia, e, portanto, terem mais probabilidade de mudar a rota ou até mesmo fugir ao visualizarem um policial. Em
Por todo o exposto, a constitucionalidade da abordagem policial passa pela vedação de investidas baseadas exclusivamente no perfil racial ou socioeconômico. A teoria estruturante do direito oferece instrumentos para analisar potenciais violações de direito praticadas por instituições de segurança pública. O programa da norma dos arts. 240, § 2º, e 244 do Código de Processo Penal veda abordagens seletivas, baseadas exclusivamente na raça e na condição socioeconômica, bem como
A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar. Para além disso, a constitucionalidade da abordagem policial dependerá de: (i) registro em áudio e vídeo; (ii) proibição de justificativas vagas, imprecisas e/ou isoladas como “descrição do suspeito compatível”, “área de criminalidade”, “proximidade de um crime”, “movimentos furtivos”, “atitude suspeita”, e outros argumentos similares, na medida em que podem encobrir práticas racistas e/ou discriminatórias, expressamente vedadas pela Constituição Federal.
Em um contexto em que se reconhece que a norma jurídica é concretizada pelo Poder Judiciário, que não há significado dado de antemão, a fundamentação da decisão, isto é, o conteúdo da norma jurídica e da norma de decisão, em uma linguagem mülleriana, deve ser discutido, debatido. A metódica estruturante do direito, enquanto “aparelho metodológico de controle das decisões”, se insere no contexto de teorias que tentam estabelecer critérios racionais para reduzir a margem de arbitrariedade na construção de uma decisão jurídica, garantindo-se, assim, a sua correção (
O presente artigo pretendeu contribuir para o processo de concretização dos textos normativos que tratam da realização de buscas pessoais por fundada suspeita. Neste contexto, verificou-se que a concepção de norma jurídica de Friedrich Müller pode auxiliar na construção de parâmetros para a fundamentação de “busca pessoal por fundada suspeita”, especialmente por meio de uma adequada formulação do programa da norma, bem como mediante a filtragem dos dados da realidade pelo âmbito normativo.
Dados obtidos a partir de estudos sociais empíricos, que demonstram a existência de disparidades nas abordagens policiais, devem ser sopesados no processo de concretização. Justificativas vagas, imprecisas e/ou isoladas como “descrição do suspeito compatível”, “área de criminalidade”, “proximidades de um crime”, “atitude suspeita” e outros argumentos similares podem encobrir práticas racistas e/ou discriminatórias, expressamente vedadas pela Constituição Federal. Finalmente, restou claro que o programa da norma não admite a realização de políticas de “tolerância zero” e/ou “
Nas palavras do autor: “A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito” (
A busca pessoal por fundada suspeita é chancelada por diversas decisões judiais em âmbito estadual. Como regra, as decisões validam o procedimento policial, sob o fundamento de que foram encontrados objetos ilícitos na posse do réu, sem se debruçar sobre as razões da “fundada suspeita”, previamente necessária para a busca pessoal.
Registre-se, desde já, que o objetivo do trabalho não é elucidar as causas da seletividade da busca pessoal por fundada suspeita (racismo, institucionalização da ordem policial, desigualdades econômicas), mas sim apresentar uma proposta de concretização normativa, tendo como fio condutor a teoria e a metódica estruturante do Direito.
A presente passagem também é citada pelo Ministro Rogério Schietti Cruz no Recurso em
Müller explica o conceito de dados reais da seguinte forma: “Os dados reais surgiram como fatos, são partículas ou estruturas da realidade natural, histórica e social. Sua facticidade material independe da formulação linguística; porém, eles precisam ser formulados linguisticamente para poderem ser palpáveis e utilizáveis como argumentos. [...] dados reais são aqueles não primariamente linguísticos” (
Por fim, a decisão estabeleceu o prazo de 1 ano para “permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal” (