rdpRevista Direito PúblicoRev. Dir. Publico2236-1766Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa10.11117/rdp.v19i102.6614Carta das EditorasDemocratização do Acesso à Justiça e as Transformações no Sistema de JustiçaDemocratization of Access to Justice and Transformations in the Justice System0000-0003-0487-4795RAMPINTALITA0000-0002-9533-2985IGREJAREBECCA LEMOS0000-0002-0245-2380BONATDEBORAUniversidade de BrasíliaBrasíliaDFBrasilUniversidade de Brasília (UnB). Brasília (DF). Brasil.002022Apr-Jun202219102518Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution Non-Commercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.
“Acesso à justiça” é uma expressão que tem sido amplamente utilizada nos estudos localizados nos campos das ciências humanas e sociais e tem comportado diferentes significados, que variam de análises sobre as condições de ingresso e de permanência dos sujeitos de direito na arena judicial à problematização sobre os fatores que geram e/ou perpetuam desigualdades e injustiças sociais.
Com o dossiê “Democratização do Acesso à Justiça e as Transformações no Campo Jurídico”, propusemos um chamamento público à comunidade acadêmica para refletir sobre esse complexo tema, com o objetivo de contribuirmos com a discussão, analisando os seus fundamentos teóricos e as diferentes perspectivas de abordagem. Atendendo ao chamado, pesquisadoras e pesquisadores do Brasil, do México, da Colômbia e dos Estados Unidos enviaram importantes contribuições, enriquecendo nossa proposta.
Os textos desse dossiê buscam discutir concepções sobre acesso à justiça, sua relação com o contexto sociopolítico e econômico atual e a importância que assume quando observamos relevantes modificações nos procedimentos que são adotados para administrar conflitos. Parte delas está relacionada ao próprio movimento de transformação digital no sistema de justiça, que é impulsionado pela introdução de novas tecnologias nas rotinas judiciais. Outra parte está relacionada às exigências colocadas pelo enfrentamento de desafios de diferentes ordens, tais como os econômicos e os sociais. Entre eles, destacamos os impactos da pandemia de Covid-19 na sociedade e as violações decorrentes da exploração de determinadas atividades econômicas, tais como a mineração e a produção de energia, que engendram catástrofes sociais e ambientais.
Da nossa parte, localizamos esse chamamento em nossas próprias trajetórias, enquanto professoras e pesquisadoras inquietas com as mais recentes transformações que notamos no campo jurídico (IGREJA, 2004, 2017, 2019 e 2020; BONAT, 2004 e 2014; RAMPIN, 2011 e 2018). Temos nos dedicado, em especial, à realização de projetos de pesquisa e à reflexão sobre o acesso à justiça (IGREJA; RAMPIN, 2012, 2021a, 2021b), buscando compreendê-lo para além das condições de entrada no sistema de justiça formal e nele incluir a identificação e problematização dos espaços constituídos, das dinâmicas estabelecidas, dos sujeitos e atores mobilizados, assim como da própria ideia de justiça que é oferecida.
A partir de distintos vieses teóricos ou locus de observação empírica, em acordo com vários artigos reunidos nesse dossiê, buscamos demonstrar que discutir o acesso à justiça envolve discutir fenômenos sociais estruturais importantes, como a desigualdade social, a discriminação e o racismo. Além disso, também envolve dimensionar as mais recentes transformações notadas nos próprios sistemas de justiça nacionais, incluindo as reformas implementadas no âmbito do Poder Judiciário em busca de modernizá-lo e ampliá-lo, e as modificações que percebemos nas dinâmicas estabelecidas e nos comportamentos adotados pelos atores do sistema de justiça formal – com destaque à Magistratura, à Advocacia e ao Ministério Público – diante da necessária incorporação de novas tecnologias de informação e de comunicação no processamento de ações judiciais e decorrentes atividades que incluem desde o atendimento ao público até a utilização, cada vez mais ampliada, de tecnologias com inteligência artificial.
Consideramos que essa reflexão é especialmente relevante diante de um cenário pandêmico, que demandou alterações e adaptações nos mais diversos campos da vida em sociedade, com a imposição de necessárias restrições à circulação de pessoas, a adoção de medidas de isolamento e de distanciamento social, a intensificação do uso de tecnologias de informação e de comunicação, e o consequente deslocamento de interações para o ambiente virtual, inclusive no que se refere às atividades relacionadas à resolução de conflitos e à garantia de direitos. Com a virtualização da justiça, notamos que as alterações e adaptações acabaram reverberando não só nas rotinas estabelecidas no sistema de justiça, em geral, e no Poder Judiciário, em específico, mas, também, nas vias de acessar os espaços virtualizados nos quais os seus respectivos atores desenvolvem suas atividades e nas estratégias para a mobilização e a garantia de direitos.
Nesse cenário, se torna cada vez mais urgente refletirmos o que é justiça, qual acesso e para quem estamos nos referindo quando invocamos o “acesso à justiça” como ferramenta analítica. Trata-se de uma tarefa complexa, à qual os textos desse dossiê se dedicam.
REDEFININDO O ACESSO À JUSTIÇA
Mauro Cappelletti e Bryant G. Garth (1988), já na década de 1970, chamavam a atenção para o fato de que o acesso à justiça, embora constitua uma expressão difícil de definição, viabiliza a determinação de pelo menos duas finalidades ao sistema jurídico, então considerado como sendo aquele “sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado”: “Ser realmente acessível a todos” e “produzir resultados que sejam individual e socialmente justos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 3). Sem negá-las ou hierarquizá-las, os autores empreenderam uma ampla pesquisa empírica com foco nos problemas relativos ao acesso ao sistema jurídico e identificaram que nos países ocidentais emergiram algumas “soluções práticas para os problemas de acesso à justiça” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12), desde as quais vislumbraram emergir, igualmente, “ondas” de renovação do acesso à justiça, em um movimento global. Seriam elas a assistência judiciária aos pobres, a representação dos interesses difusos e o enfoque do acesso à justiça, que “centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 25).
Passados quase cinquenta anos desde a realização do estudo, identificamos novos problemas no acesso à justiça e, igualmente, novas soluções que vão sendo construídas como respostas aos desafios atuais que envolvem o tema. A necessidade de ampliar o debate já vinha sendo colocada por diversas pesquisadoras e pesquisadores que chamavam a atenção para a necessidade de serem considerados aspectos sócio-históricos locais, que impactam diretamente na promoção do acesso à justiça (JUNQUEIRA, 1996). Paralelo a isso, um conjunto de análises vem refletindo sobre os limites e as possibilidades tanto de sua ampliação conceitual quanto de sua capacidade de promover a democratização de direitos ou manter o status quo (LAURIS, 2015). Nesse mesmo sentido, as contribuições de colegas desse dossiê reclamam a necessidade de se revisitar a definição e problematização do acesso à justiça e de se considerar a potencialidade de transformação do próprio campo jurídico institucionalizado em transformar a justiça.
A necessidade de ampliação do debate sobre o acesso à justiça é trabalhada por Daniel Bonilla Maldonado, em seu artigo “Acceso a la justicia y estado moderno”. Nele, o autor nos fala de uma expansão para além dos aspectos técnicos e especializados, e que se estenda para o interesse de pesquisadores de outras disciplinas, como das ciências sociais e das humanidades e, finalmente, faça parte dos debates públicos das democracias liberais da modernidade tardia. Como afirma o autor, compreender o espaço conceitual ocupado pelo acesso à justiça no horizonte de perspectivas que constitui o Estado Moderno é central para compreender a estrutura que compõe essa forma particular de organizar uma comunidade política. Bonilla busca traçar, historicamente, a relação entre acesso à justiça e o Estado Moderno, contribuindo imensamente para a proposta do dossiê ao problematizar a própria ideia de acesso à justiça e localizá-lo historicamente.
Podemos, igualmente, pensar o acesso à justiça a partir da proposta de Karina Ansolabehere, em seu artigo “Poderes judiciales frente a sí mismos: el caso del Poder Judicial Federal mexicano”, no qual ela destaca a importância de se considerar como se produzem as transformações no campo jurídico, tais como as constitucionais, as legais e as das ideias jurídicas, e de que maneira são incorporadas nas instituições legais. Embora a autora não trate diretamente sobre o acesso à justiça, e sim sobre a ideia dos direitos humanos em geral, podemos interpretar, nesse sentido, que discutir perspectivas de promoção de acesso e inovação nos campos dos direitos exigiria conhecer a abertura institucional para sua discussão, implementação e efetividade. A escolha do poder judicial como lócus de observação dessa atuação institucional diz respeito ao protagonismo sociopolítico crescente desse poder na América Latina nas últimas décadas. Com foco no México, a autora busca evidenciar a relevância das dinâmicas internas institucionais que envolvem os detonantes externos das mudanças e as disposições individuais dos juízes em considerá-las. Dessa forma, identifica a potencialidade do Poder Judiciário em operar como agente transformador de si mesmo, de suas próprias estruturas.
Esse sentido de preocupação com as possibilidades de transformação do campo jurídico institucional também estão presentes no artigo “La relación intercultural entre culturas jurídicas y la democratización de la justicia: el caso de la coordinación de derechos humanos de la Suprema Corte Mexicana”, de autoria de Erika Bárcenas Árevalo. A autora apresenta os resultados que obteve em uma pesquisa etnográfica que realizou junto à Coordenação de Direitos Humanos e Assessoria da Presidência da Corte Suprema Mexicana. Nela, analisou a sua contribuição para a geração de processos de interculturalidade jurídica, ou seja, de relação entre diferentes culturas jurídicas, que resultaram na democratização do conhecimento jurídico e da própria justiça, na medida em que contribuíram para que muitos juízes se abrissem à aplicação do direito internacional dos direitos humanos, em vigor no país a partir de 2011. A principal conclusão da autora é que esses processos de interculturalidade jurídica podem ser processados por agentes estrategicamente posicionados, de forma a contribuírem para a democratização do direito e o acesso à justiça, na medida em que tornam visível e valorizam a existência de outras culturas jurídicas e seus entendimentos vernáculos do direito.
Essas reflexões nos alertam para a necessidade constante de discutirmos e conceitualizarmos o acesso à justiça e as potencialidades de envolvimento e implicação com sua defesa do campo institucional. E ressoam perspectivas compartilhadas em outras pesquisas acadêmicas que tentam dar conta da perspectiva e da experiência daqueles usuários que buscam acessar o sistema de justiça e encontram um espaço fechado a suas próprias necessidades e especificidades. Essas perspectivas e experiências questionam, igualmente, que acesso e que justiça estamos buscando definir e analisar.
A EXPERIÊNCIA DO ACESSO À JUSTIÇA
O cenário de desigualdade no campo do acesso à justiça impõe desafios para o seu estudo, entre os quais encontramos a diversidade de especificidades dos sujeitos e a grande variação das condições de acesso que por eles podem ser enfrentadas. Por essa razão, é fundamental que mais pesquisas sejam realizadas, especialmente aquelas que envolvam a pesquisa empírica e que permitam acessar o que Rebecca Sandefur (2018), uma das autoras desse dossiê, considera como essencial: as experiências e a vivência das pessoas em sua busca por justiça.
O texto “Designing just solutions at scale: lawyerless Legal Services and Evidence-Based Regulation”, de Matthew Burnett e Rebecca Sandefur, problematiza as dificuldades que as pessoas enfrentam quando buscam o sistema de justiça, especialmente pela falta de ajuda para resolverem seus problemas. Os autores propõem discutir um novo paradigma que auxilie à promoção do acesso à justiça mediante uma proposta que rompa com a lógica centrada no advogado. Inspirados em experimentos na regulação da prática do direito nos Estados Unidos, propõem uma mudança de paradigma: “apenas soluções”, ou seja, uma estrutura de soluções justas que se caracterizam por se basearem em evidências e com foco em resultados. Não se trata de regulamentar, mas, ao contrário, de promover uma nova forma de considerar a prática jurídica e promover o acesso à justiça de acordo com as necessidades dos cidadãos. Uma proposta que busca focar mais no que está sendo, de fato, feito pela justiça, do que “como” ou “por quem”. Essa proposta vem em resposta às conclusões de pesquisas que demonstram que mais de dois terços da população mundial – mais de 5 bilhões de pessoas – vivem fora da proteção da lei e não têm acesso significativo à justiça. Uma razão importante para isso é que, em todo o mundo, as pessoas estão bloqueadas, ou seja, estão fora de seus próprios sistemas legais.
Com o mesmo objetivo de discutir o problema das desigualdades no campo da justiça, Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Iara Sanchez Roman e Paula Harumi Kanno buscam, em seu artigo “A advocacia popular e o século XXI”, trazer a importância da advocacia popular e das organizações sociais, assim como das políticas públicas de formação para as disputas judiciais, por meio de um estudo panorâmico da defesa popular nos séculos XIX e XX e sua transformação no século XXI. O texto inicia com a afirmação, talvez como uma provocação, de que as declarações de direitos da modernidade precisam de um comando com força real para serem executadas. Depois de o direito ser reconhecido pela lei, é necessário que estruturas administrativas se movam para que tenham vigência e sejam punidas suas violações. Há distâncias enormes entre a declaração, a efetiva garantia e a repressão à violação. Em um amplo e interessante estudo da legislação brasileira, os autores procuram demonstrar a distância compreendida entre a norma e a realidade, e de como, à despeito dessas, o Estado foi legitimando e construindo as exclusões sociais, violando constantemente os direitos, especialmente das populações camponesas, dos afrodescendentes e dos povos indígenas. Em resposta a tais violações, os autores traçam, historicamente, os processos de resistência das populações e dos coletivos atingidos em seus direitos, que buscavam, para além do reconhecimento de suas demandas, provocarem mudanças no sistema jurídico. Neste contexto de resistência, surgem propostas como as assessorias jurídicas populares, prontas a lutarem no campo jurídico-judicial pela representatividade desses povos e de seus direitos.
Duas outras contribuições de nosso dossiê são exemplares para demonstrarem a importância de se considerar as desigualdades sociais e o papel que deve exercer a justiça do Estado na proteção ampla de seus cidadãos e na garantia de seus direitos fundamentais. Além disso, essas abordagens também buscam demonstrar as formas alternativas e independentes que as pessoas e os coletivos recorrem em forma de alcançar a justiça.
Um dos temas importantes a serem tratados é a busca pelo acesso à justiça e a garantia de seus direitos em caso de afetados por desastres ambientais. O artigo “Acesso à justiça e desastres: as assessorias técnicas independentes e a participação direta das pessoas atingidas em conflitos coletivos complexos”, de Maria Cecília de Araújo Asperti, Camilo Zufelato e Carolini Trevilini Garcia, examina, por exemplo, o papel das assessorias técnicas independentes como um meio de viabilizar a participação direta em casos de desastres, na arena extrajudicial e judicial, tomando como estudo de caso o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana/MG, ou “Caso Rio Doce”. Os autores questionam como assegurar a participação direta, informada e efetiva de pessoas atingidas na tomada de decisões no âmbito das ações coletivas, especificamente no estudo de caso analisado. Mediante análise de documentos, buscaram verificar como se deu o reconhecimento do direito dos atingidos à assessoria técnica, qual o seu papel e quais foram (e têm sido) os entraves encontrados para a sua atuação. A contribuição importante desse estudo é a apresentação da conquista desse direito, bem como as disputas sobre o papel a ser desempenhado e a resistência até hoje enfrentada pelas organizações escolhidas pelos atingidos. Por fim, explicam que as assessorias técnicas possuem um papel específico, que não se confunde com o do perito ou do representante processual, e que esse apoio interdisciplinar é fundamental para viabilizar a participação efetiva das pessoas atingidas em espaços decisórios em casos complexos, como são as ações coletivas relacionadas a desastres.
Ainda no âmbito das desigualdades sociais e das múltiplas exclusões que ainda existem no campo da justiça social, um segundo artigo, intitulado “Justiça itinerante trabalhista como instrumento de combate ao trabalho análogo à escravidão no estado do Amazonas-Brasil”, de Igo Zany Nunes Correa, Emerson Victor Hugo Costas de Sá e Valena Jacob Chaves Mesquita, analisa o combate ao trabalho análogo à escravidão no Estado do Amazonas, um trauma ainda vivido por vários cidadãos brasileiros, aos quais são negados todos os valores de dignidade e de humanidade. O texto discute a justiça itinerante trabalhista como um instrumento de combate a esse tipo de trabalho, considerando que a mobilidade das estruturas jurisdicionais se soma às demais estruturas móveis do Poder Público para união de forças no combate estrutural preventivo e repressivo dessa forma de precarização do trabalho. A análise dos autores parte de uma desconstrução com lentes decoloniais da historicidade das relações de exploração capitalista na região amazônica, e se baseando no método materialista histórico-dialético, afirma que a itinerância trabalhista representa instrumento de combate ao trabalho análogo à escravidão no Amazonas com condenações por danos morais coletivos e individuais, além do adequado tratamento da matéria por meio do conhecimento local, possibilitando a colheita de provas e evitando o perecimento pela atuação imediata.
Para concluirmos esse questionamento das desigualdades sociais que envolvem e impactam coletividades de maneira ampla, violando seus direitos como cidadãos plenos, citamos o texto de Matheus Casimiro e George Marmelstein. Os autores nos trazem um texto original que aborda os litígios estruturais e o potencial do Supremo Tribunal Federal em lidar com eles. Recordam a principal crítica em relação a eles, de que não são capazes de produzir transformações sociais relevantes, no entanto, demonstram que, ainda de forma simbólica, geram importante efeitos práticos em médio e longo prazos, afirmando que as dimensões simbólica e concreta não são excludentes, mas complementares. Os autores traçam analogias entre o caso brasileiro e sul-africanos, enriquecendo sua contribuição.
VIRTUALIZAÇÃO NO CAMPO DA JUSTIÇA
Iniciamos nosso texto falando da transformação digital no sistema de justiça que foi impulsionada pela introdução de novas tecnologias nas rotinas judiciais. O tema da virtualização no campo da justiça e sua aceleração nos últimos tempos colocou novamente em foco o tema do acesso à justiça e se converteu em um dos seus focos principais. No entanto, forçoso é se questionar sobre a dimensão e o impacto que a introdução das novas tecnologias tem tido na prestação jurisdicional.
Em “Acesso à justiça e transformação digital: um estudo sobre o Programa Justiça 4.0 e seu impacto na prestação jurisdicional”, Talita Rampin e Rebecca Igreja buscam problematizar essa discussão, fundamentada em resultados preliminares alcançados com recente pesquisa. Com base em uma ampla reflexão, creem ser importante questionar se com esse esforço de modernização do sistema estamos mantendo os mesmos e velhos problemas que assombram o pleno acesso à justiça e que se vinculam diretamente às desigualdades persistentes no continente americano. Como tratar de modernização e de novas tecnologias na justiça se ainda persistem problemas estruturais que inibem o mínimo acesso à vida digna, à educação e mesmo o acesso à Internet? Ou como tratar do tema, se ainda observamos violações constantes aos direitos dos cidadãos e cidadãs, assim como de diversas coletivas, como os povos e as comunidades tradicionais? Como pensar em consolidar um sistema amplo e abarcador de justiça, universalizado, estruturado e informatizado, se ainda reproduzimos um aparato judicial que não é representativo da diversidade social, cultural e de gênero da sociedade? Como evitar que esse sistema modernizado não acabe por expandir ainda mais velhas concepções de justiça monistas discriminatórias das diferentes perspectivas de Estado e sociedade em disputa?
A expansão da tecnologia no campo da prestação jurisdicional é inevitável e importante. O artigo “Projeto Simplificar 5.0: Legal Design e Inteligência Artificial ampliando o acesso à justiça”, de Aline Vieira Tomás Protásio, Carolina Lemos de Faria e Fabiano Hartmann Peixoto, procura demonstrá-la, e nele são analisados aspectos de ampliação do acesso à justiça presentes no Projeto Simplificar 5.0. Paralelamente com a estratégia de facilitação tecnológica de comunicação aos jurisdicionados, o artigo buscou apresentar a inteligência artificial como ferramenta de apoio na classificação de sentenças judiciais, facilitando a produção de resumos. Sem dúvida, observamos nessa análise a potencialidade que a tecnologia possui para simplificar processos, acelerar decisões, permitir mais celeridade e efetividade no sistema de justiça, o que não pode ser ignorado e evitado.
É verdade que, em um contexto global, a sociedade se move cada vez mais em direção a uma comunicação mediada pelo uso das redes de Internet e de todas as ferramentas que disponibiliza. Nesse cenário, os problemas e as interlocuções ganham dimensões globais, internacionais, no qual os fenômenos mais localizados são vivenciados em suas interações com os contextos mais globais. Esse movimento é estimulado pelo avanço de um capitalismo neoliberal que se apresenta de maneira universal, inevitável e que coloca os interesses do capital frente às necessidades dos diversos povos e cidadãos do planeta. São atores centrais desse sistema que controlam o avanço tecnológico e as redes de comunicação virtuais das quais as diversas nações e suas estruturas burocráticas são dependentes atualmente.
O sistema de justiça não escapa deste contexto; ao contrário, constitui um reflexo dessas mudanças que impactam diretamente na sua própria estrutura. Um exemplo são as reformas promovidas internacionalmente em seu âmbito, especificamente nos sistemas formais de administração de conflitos. Como o artigo de Igreja e Rampin nesse dossiê demonstrará, em acordo com outros estudos (IGREJA; RAMPIN, 2021; RAMPIN, 2018; GARTH, 2009), essas reformas terão um grande incentivo de organismos internacionais com o objetivo, entre outros, de renovar as justiças nacionais, tornando-as mais adaptadas a este contexto de capitalismo neoliberal universal. Cabe ao sistema de justiça promovê-las e vinculá-las da melhor maneira possível às necessidades nacionais, e, para isso, a participação da sociedade civil e da academia se faz imprescindível. Seria, assim, condição necessária e fundamental para a promoção de uma justiça que se pretenda democrática e que responda aos anseios da sociedade como um todo. Nesse sentido, é essencial refletir sobre como modernizar a oferta de justiça sem deixar de considerar os contextos locais, ainda mais em países que demonstram tanta desigualdade social e diversidade nacional/regional.
Outros artigos desse dossiê vêm reforçar essa preocupação de que a virtualização, considerando seus benefícios, venha de fato a contribuir para a promoção da igualdade e de maior acesso geral à justiça. No texto “Acesso à justiça, grupos vulneráveis e exclusão digital: uma análise crítica do atendimento da defensoria pública do estado de Goiás durante a pandemia da Covid-19”, as autoras Debora Bonat, Gustavo Assis e Mariane Carolina Gomes da Silva Rocha realizam uma análise crítica do atendimento da Defensoria Pública do Estado de Goiás durante a pandemia da Covid-19, promovendo um exame da situação dos grupos vulneráveis durante o período pandêmico, em especial do papel desempenhado pela Defensoria Pública do Estado de Goiás na defesa de direitos em um cenário de exclusão digital. O impacto da virtualização da justiça e da ausência de assistência extrajudicial prestada pela Defensoria e as suas consequências no acesso à justiça foram também objeto de exame. O texto também contribui para a problematização sobre um sistema de justiça que se moderniza, mas ainda reflete os mesmos processos de exclusão historicamente verificados que os demais artigos desse dossiê analisam.
Nesse mesmo viés de discussão, temos a contribuição de Gisele Gutierrez de Oliveira Albuquerque e Lidia Ribas, que buscam discutir a função social da sessão de mediação on-line aplicada no Judiciário sul-mato-grossense como prática autocompositiva, democrática e que estimula o exercício da cidadania no artigo “Implementação da política de tratamento de conflitos no Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul sob o viés do acesso à justiça digital e das inovações tecnológicas”. As autoras propõem analisar o modelo de jurisdição consensual sob o viés da jurisdição estatal como a última ratio e descrever o uso da tecnologia como instrumento processual capaz de promover a efetiva tutela de direitos. Por fim, concluem que o acesso – digital – à Justiça pode representar um significativo avanço quando proporciona um maior alcance demográfico e operacional; no entanto, não podem ser ignoradas as demandas reprimidas daqueles que não têm condições materiais ou capacidade técnica para operarem a tecnologia na busca de uma solução para o seu conflito.
Por fim, de forma a concluir as colaborações e os questionamentos que trouxemos aqui neste texto e que abordam, de forma enriquecedora, a problemática da virtualização no campo da prestação jurisdicional, retomamos o estudo sobre o modelo de ouvidoria externa da Defensoria Pública e os desafios colocados por ele para o acesso à justiça que nos apresenta Luciana Gross e Maurício Buosi Leme. O artigo “O modelo de ouvidoria externa da Defensoria Pública e os desafios do acesso à justiça” aborda o problema contemporâneo da exclusão digital a partir do viés da justiça itinerante e procura demonstrar a impossibilidade da substituição de uma justiça próxima e direcionada ao mais vulnerável como meio mais efetivo do acesso à justiça. O seu objetivo é analisar as características do desenho institucional da ouvidoria externa da Defensoria Pública, refletindo sobre as potencialidades e os limites do modelo, à luz do processo de institucionalização da Defensoria e de alguns marcos conceituais e normativos sobre políticas públicas de acesso à justiça. Os autores dialogam teoricamente com a abordagem sobre movimentos sociais, processos de institucionalização e capacidades institucionais, enfatizando as questões relativas ao encaixe de um órgão de controle externo na estrutura da Defensoria. O artigo, de maneira eficiente, nos leva a mergulhar nas estruturas da defensoria pública e sua capacidade de atuar de maneira integrada com uma ouvidoria externa em prol da defesa dos direitos dos cidadãos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Certamente todos os nossos artigos não são suficientes para responder aos questionamentos diversos que propomos sobre o acesso à justiça. Além de o tema abarcar diferentes perspectivas, diferentes olhares oriundos dos diversos atores que estão envolvidos na busca por uma justiça efetiva, a realidade está em plena transformação, reproduzindo velhos costumes, velhos problemas e incorporando novas problemáticas, novos desafios.
Se consideramos o Direito como esse espaço de lutas de poder e de resistência a todos os tipos de dominação, de exclusões, sua abordagem exige maior amplitude, olhares transdisciplinares, perspectivas múltiplas que envolvam um balanço histórico do que temos alcançado com o tempo em termo de reconhecimento de direitos e do que falta ainda a ser alcançado. As violações são muitas, os retrocessos evidentes, mas não podemos ignorar os aprendizados obtidos nas lutas cotidianas por justiça.
Que as contribuições reunidas nesse dossiê sejam evidências da persistência, no âmbito acadêmico, de esforços traçados para transformar essa realidade de injustiça social, por meio da democratização do acesso à justiça e de transformações no campo jurídico.
Concluímos com um agradecimento especial às autoras e aos autores que colaboraram com a construção desse dossiê, assim como à equipe da Revista de Direito Público, com destaque à Luciana Garcia e Jéssica Nagasaki, que não mediram esforços para viabilizá-lo.
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