Doutoranda em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza. Mestre em Direito e Gestão de Conflitos pela Universidade de Fortaleza. MBA em Gestão Judiciária pela FGV/ESMEC. Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.
Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União.
Doutor em Direito pela UFMG, com estágio pós-doutoral pela Universidade do Minho. Professor Titular da Universidade de Fortaleza (Doutorado, Mestrado, Especializações e Graduação em Direito). Professor Associado da Universidade Federal do Ceará (Graduação em Direito). Advogado Criminalista.
O Poder Judiciário tem tomado parte nas discussões e deliberações acerca de temas que, prioritariamente, deveriam ser discutidos e definidos pelos demais Poderes da República, gerando questionamentos acerca dos limites da separação entre os Poderes. Essa situação aumenta sua exposição às críticas e lhe exige maior ônus argumentativo, no sentido de justificar racionalmente as decisões. Neste artigo, toma-se como premissa a ideia de que o Poder Judiciário, especialmente os tribunais superiores, tem legitimidade constitucional para determinar a implementação de direitos fundamentais diante de omissões inconstitucionais dos demais Poderes. O escopo primordial consiste em avaliar se as decisões dos Tribunais Superiores sobre a possibilidade de decretação de prisão preventiva, após a edição da Lei nº 13.964/2019, observam o sistema de precedentes e se está presente o ativismo judicial na interpretação e aplicação da lei. Utiliza-se de pesquisa bibliográfica e documental do tipo pura. No tocante à abordagem, a pesquisa é do tipo qualitativa. E, por fim, quanto aos objetivos, cuida-se de pesquisa descritiva e exploratória. A escolha metodológica permite comparar a posição da doutrina e da jurisprudência sobre os limites da atividade do julgador. Foi feito um cotejo analítico entre as razões de decidir no Recurso Ordinário em
The Judiciary has taken part in the discussions and deliberations on topics that, as a matter of priority, should be discussed and defined by the other Powers of the Republic, generating questions about the limits of the separation of Powers. This situation increases their exposure to criticism and demands a greater argumentative burden, in the sense of rationally justifying decisions. This article takes as a premise the idea that the Judiciary, especially the Higher Courts, have constitutional legitimacy to determine the implementation of fundamental rights, in the face of unconstitutional omissions by the other State branches. The primary scope is to assess whether the decisions of the Superior Courts on the possibility of ordering preventive detention, after the enactment of Law n. 13.964/2019, observe the system of precedents and whether judicial activism is present in the interpretation and application of the law. Pure bibliographic and documental research is used. Regarding the approach, the research is qualitative. And, finally, regarding the objectives, descriptive and exploratory research is carried out. The methodological choice allows comparing the position of doctrine and jurisprudence on the limits of the judge’s activity An analytical comparison was made between the reasons for deciding in the Ordinary Appeal in Habeas Corpus n. 131.263/GO and “Agravo Regimental” in Habeas Corpus n. 648.107/ES, both judged by the Superior Court of Justice, which deal with preventive detention. It seeks to demonstrate that non-compliance with the system of precedents combined with strong judicial activism cause legal uncertainty, in addition to being an affront to the Rule of Law itself.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Fundamentação das decisões judiciais e hermenêutica; 2 Argumentação jurídica; 3 Precedentes; 4 A Lei nº 13.964/2019 e a decretação da prisão preventiva; Conclusão; Referências.
Conquanto seja sempre relevante, perde-se no tempo a discussão sobre a relação entre a separação de poderes do Estado e a atuação dos juízes, especialmente quando o foco do debate se centra na determinação ou na intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas ou em deliberações legislativas. Essa questão tem tomado o espaço público, desde a Academia até a sociedade civil (associações de classe, agremiações políticas e religiosas, por exemplo), passando pelo parlamento e pela crítica dos governantes. Responder quais os limites da atividade judicante e qual foi o caminho adotado para a tomada de decisão deixou de interessar apenas a certo grupo de pessoas e passou a ser um debate popular, o que pode ser explicado por múltiplas razões.
Uma delas pode ser encontrada no fato de que o Supremo Tribunal Federal (STF), em um volume bastante expressivo de casos, tem sido chamado diretamente a arbitrar conflitos que envolvem interesses coletivos
O acesso à informação, decorrente da transmissão simultânea dos julgamentos do STF, fez com que a sociedade acompanhasse o dia a dia das sessões da Corte e quem são seus integrantes, trouxe o interesse de saber como são tomadas as decisões, além de haver, até mesmo, certa expectativa coletiva sobre quando e como certo assunto chegará ao Tribunal e qual será a decisão a ser tomada. A imprensa, tanto de modo geral quanto aquela especializada em cobrir o trabalho dos integrantes do STF, chega, muitas vezes, a especular (quase sempre com apreciável margem de acerto) o placar dos julgamentos, indicando como cada ministro irá votar, a partir de temas similares já apreciados.
As decisões do STF – assim como toda e qualquer decisão judicial – não são imunes à crítica, especialmente pelos fatores extrajurídicos que são levados em consideração no processo decisório. Entretanto, é preciso ter em mente que “a justiça constitucional jamais neutraliza inteiramente a influência de fatores políticos no desempenho de seu mister” (
É comum que se argua o fato de os juízes não serem eleitos como fundamento para críticas contra decisões que interferem em atos da Administração Pública ou em atos oriundos do Poder Legislativo (
Já sobre a forma de deliberação e o conteúdo de certas decisões judiciais, não somente do STF, é possível tecer diversas considerações relevantes e que guardam procedência, diante da perplexidade causada pela não observância de certos ritos institucionais ou da questionável fundamentação utilizada. Parte-se da premissa de que o Poder Judiciário, em casos excepcionais, pode determinar a adoção de políticas públicas quando os direitos envolvidos têm base constitucional e há omissão dos demais poderes estatais, consoante a jurisprudência do STF
O ponto que se destaca no presente estudo é a questão da fundamentação da decisão judicial e do ônus argumentativo que pende sobre o julgador, sob a perspectiva hermenêutica e do respeito aos precedentes judiciais, no âmbito da colegialidade, especificamente sobre a possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício. Para tanto, utiliza-se de pesquisa bibliográfica e documental do tipo pura, vez que se baseia em estudos de doutrina, artigos, leis e decisões judiciais sobre o tema. No tocante à abordagem, a pesquisa é do tipo qualitativa, vez que traz reflexão sobre ações humanas e sociais. E, por fim, quanto aos objetivos, cuida-se de pesquisa descritiva e exploratória.
O artigo está dividido em quatro partes. O primeiro tópico versa sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais como corolário do próprio Estado Democrático de Direito, para que se tenha conhecimento acerca das razões de decidir e não haja arbitrariedades e decisionismo. No segundo ponto, destaca-se o papel da argumentação jurídica no processo de justificação da decisão judicial. No terceiro tópico, é abordada a questão dos precedentes como fonte do direito e o
Pretende-se, portanto, discutir o papel do Poder Judiciário no Estado Constitucional de Direito, como garante dos direitos fundamentais e do regime democrático. Nessa perspectiva, busca-se averiguar se o processo decisório respeita os limites impostos pelo legislador ou se há prática voluntarista que caracteriza decisionismo judicial, típico de uma postura ativista que cria um Direito de acordo com a vontade do decisor.
Por meio da análise dos votos proferidos nos
A fundamentação das decisões judiciais pode ser observada sob dúplice vertente: um dever fundamental do Estado que presta a jurisdição e uma garantia do jurisdicionado e da sociedade. Isso se justifica porque, por meio do conhecimento das razões declinadas na decisão, é possível, de acordo com
(1) controlo da administração da justiça; (2) exclusão do carácter voluntarístico e subjectivo do exercício da actividade jurisdicional e a abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes e (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas.
Nesse contexto, “[…] o método subsuntivo deu lugar a um Judiciário protagonista e ativo, mas não se pode pressupor que o julgador tenha ‘carta branca’ para julgar como entende de acordo com seus valores internos” (
O afastamento do voluntarismo e a exigência de racionalidade e coerência nas decisões judiciais decorrem da expectativa de previsibilidade e estabilidade (segurança jurídica), tendo-se presente que “a função criadora do Direito dos tribunais, que existe em todas as circunstâncias, surge com particular evidência quando um tribunal recebe competência para produzir também normas gerais através de decisões com força de precedentes” (
Entre nós, como uma das expressões do Estado Democrático de Direito, há garantia constitucional da fundamentação das decisões judiciais (inciso IX do art. 93 da CF), como forma de combater arbitrariedades e decisionismos. Entre as múltiplas possibilidades apresentadas ao decisor, diante da indeterminação do texto da norma, ele deve expor as razões de fato e direito que o fizeram eleger determinada solução para o conflito.
Como aspectos da garantia da fundamentação das decisões judiciais, menciona-se o direito de a parte ter suas razões apreciadas pelo julgador com isenção de ânimo (na perspectiva de reduzir os efeitos das preconcepções) e consideradas, ademais, de forma séria e detalhada. Esse dever/garantia da fundamentação da decisão decorre do fato de a ordem jurídica não conseguir prever todas as possibilidades que demandam a sua aplicação. E é a fundamentação que pode assegurar que os casos não serão decididos de forma aleatória.
Existe uma relação de subordinação entre Constituição, lei e sentença judicial que, porém, nunca é completa. De acordo com
A margem de criação do Direito pelo legislador é mais ampla que aquela conferida ao juiz, o qual não se limita a anunciar a vontade do legislador, não se podendo perder de vista, entretanto, que, “com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador [...]” (
Essa relação desproporcional entre as atividades judicante e legislativa, em certa medida, faz crescer questionamentos sobre a legitimidade democrática de algumas decisões judiciais, por conta do nítido avanço sobre os limites impostos pelos atos normativos, editados segundo as opções políticas do parlamento. O desrespeito a esses limites é o que caracteriza o ativismo judicial (constitucionalismo principialista), ao qual se contrapõe o garantismo (constitucionalismo garantista), que tem por objeto de estudo a tensão constante entre liberdade e poder
Fixado que o ato criador do Direito pelo julgador é, também, ato de vontade, que se conjuga ao ato de cognição, a hermenêutica confere ao intérprete “segurança com relação aos parâmetros necessários para guiá-lo em suas deliberações e decisões, sobretudo, com relação às decisões que precisam ser fundamentadas e justificadas a outros indivíduos” (
Segundo Andrade (2016, p. 101), a hermenêutica sistematiza e desenvolve os métodos interpretativos, de modo que não há como tomar como sinônimas as expressões “hermenêutica” e “interpretação”. Como o ordenamento jurídico é dotado de generalidade (expressada por meio de regras e princípios), existe a necessidade de fixar a correlação entre a norma abstrata e o caso concreto, e isso se faz por meio da interpretação, que, por sua vez, se vale da ciência hermenêutica.
Vale registrar, contudo, a posição de
Haveria aspectos da legislação que autorizariam uma espécie de julgamento judicial com um vínculo fraco em relação à lei (por exemplo: decidir sobre a ocorrência de culpa grave ou sobre outros conceitos jurídicos indeterminados). Neles, por opção legislativa, as decisões seriam tomadas caso a caso. A grande dificuldade seria objetivar essa valoração, sendo, para Alexy, impossível à hermenêutica lidar, de forma objetiva, com valores e valorações. Então, para ele, a solução para a questão da objetivação da valoração estaria nas regras previstas nas teorias da argumentação.
Esse pensamento é claramente baseado na hermenêutica de Wilhelm Dilthey e Emílio Betti, portanto, anterior ao “giro linguístico” de Wittgenstein e ao “giro ontoteleológico” de Heidegger (
Feito o registro da posição de Alexy, fundada na visão da hermenêutica como método (Dilthey) e na ideia de que a moldura normativa é criada pelos seus cânones (modos de interpretação), que não afastam o subjetivismo nas decisões de casos difíceis, cumpre retomar a consideração da hermenêutica como fator determinante para o processo decisório.
A hermenêutica como forma de compreensão por meio da linguagem, e não como um método de interpretação de textos, considera a pré-compreensão, a compreensão e a interpretação como um “círculo hermenêutico”. Nesse círculo, através da compreensão e a da interpretação, ocorrem as transformações das pré-compreensões, dos pré-juízos e pré-conceitos, os quais são condições da interpretação. Por outro lado, interpretar pressupõe pré-compreender (
A linguagem constitui a realidade do intérprete (compartilhada pela comunidade), e a objetividade existente nela, somada à crítica constante sobre seus pré-juízos, contribui para a tentativa de eliminação do subjetivismo na interpretação. A conjugação da linguagem objetiva com a crítica do intérprete sobre seus pré-juízos milita em favor da pretensão de combater a subjetividade no processo interpretativo, na linha filosófica defendida por Gadamer. O sentido de um texto ou de uma experiência somente pode ser definido mediante o diálogo entre os sujeitos, como forma de se chegar à verdade. Não há, porém, uma única verdade ou uma única “leitura correta” (
O círculo hermenêutico é entendido como uma interpenetração entre aquilo que é carreado para o texto pela tradição e aquilo que é trazido pelo intérprete. A pré-compreensão do intérprete faz com que, no processo de com-preensão, o texto se transforme sucessivamente num texto diferente. Em sentido inverso, o texto modifica as concepções do intérprete. A compreensão, em Gadamer, nunca é uma mera reprodução, mas sempre também um comportamento produtivo.
Então, é possível dizer que a hermenêutica não se limita à compreensão dos textos, mas, antes, busca compreender o homem por meio da linguagem. Dentro desse processo de compreensão e interpretação, a conjugação da objetividade da linguagem com a crítica consciente do intérprete sobre suas pré-compreensões atua com o intuito de reduzir a subjetividade. Ainda dentro desse mesmo contexto, é necessário o retorno ao passado para construir o presente.
O conceito de argumentação não é unívoco, porém é possível dizer quatro elementos comuns a qualquer tentativa de conceituação, tomando por base as lições de
Com base nesses elementos, é possível falar em três concepções para argumentação:
A concepção
A respeito do objetivo da argumentação,
provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para ação, que se manifestará no momento oportuno.
As concepções formal e material podem ser encaradas de um ponto de vista individual, já que a argumentação pode ser feita por um indivíduo. Já a concepção pragmática pressupõe, necessariamente, diálogo, cujo êxito dependerá da persuasão dos agentes. Entretanto, é preciso dizer que essas concepções partem da ideia de tipos de problemas ideais. Na realidade do ato argumentativo, não há como aplicar puramente uma concepção e deixar de lado as demais. Não há incompatibilidade entre os modelos, podendo haver combinação de todos eles. A forma dos enunciados, os seus conteúdos e a pretensão de persuasão no diálogo são elementos observados no processo argumentativo cotidiano. Dentro de cada contexto, cada uma das concepções, que são integradas, tem maior ou menor peso.
No Direito, ocorre exatamente a integração das três concepções. A pretensão de certeza é vinculada ao aspecto formal. Os valores da verdade e da justiça são relacionados à concepção material. E, finalmente, a busca de consenso reflete a concepção pragmática. Em suma, a argumentação no Direito “trata de inserir as boas razões na forma adequada para que seja possível a persuasão” (
Importa destacar que, no contexto da atividade judicial, a concepção de maior peso é a material, pois vinculada à justificação exigida dos juízes. Motivar uma decisão não é simplesmente demonstrar a correspondência lógica entre as premissas (concepção formal) e nem que ela convence certo tipo de auditório (concepção pragmática), mas que a sentença possui boas razões, calcadas na racionalidade, na dogmática jurídica e explícita quanto aos critérios interpretativos adotados (
Nessa linha, de acordo com a teoria
Quando a CF determina a motivação das decisões judiciais, ela quer dizer, na verdade, que elas devem ser justificadas, ou seja, aferíveis do ponto de vista da racionalidade (juízos de coerência e universalidade). Note-se que essa diferenciação entre motivação e justificação não deve ser confundida com discursos descritivos e prescritivos sobre a decisão judicial. Pode-se descrever como os juízes decidem (discurso descritivo) e como eles deveriam fazer (discurso prescritivo).
Pode-se afirmar que a indeterminação do Direito decorre da potencial equivocidade dos seus textos e da vagueza de suas normas. Essa vagueza decorre da impossibilidade de, previamente, abarcar todas as hipóteses fáticas que recaem sobre o âmbito de incidência. A equivocidade guarda relação com a forma como são redigidas as proposições gramaticais do texto, as quais podem gerar ambiguidade, complexidade ou outra circunstância que gere múltiplas possibilidades de aplicação. Além dessa questão de construção textual, também influenciam essa situação de incerteza as concepções do intérprete e os métodos interpretativos utilizados (
A interpretação do texto, que sofre influência das pré-compreensões do intérprete (do ponto de vista filosófico e dogmático), deve, ao máximo, tentar reduzir esse grau de indeterminação, de modo que o Direito componha uma ordem jurídica em que haja liberdade e igualdade.
Como dito linhas acima, essa atividade interpretativa deve ser racional, no sentido de ser fiel ao Direito, para que se possa fazer um controle da “intersubjetividade das razões invocadas” (
A justificação, de sua vez, pode ser dividida em
Dentro da ideia dessa dupla indeterminação do Direito (decorrente da equivocidade do texto e da vagueza da norma), cumpre observar a regra do
Deixe-se registrada a posição de
Razão necessária é aquela imprescindível. E sua suficiência está ligada à ideia de que basta somente ela para resolver a questão jurídica. Precedentes são as razões de direito necessárias e suficientes (
Para
Todavia, é certo que o cotidiano da prática judicante é pródigo de exemplos em que essa força obrigatória e vinculante dos precedentes não é prestigiada, inclusive no âmbito dos próprios tribunais dos quais eles emanam, o que conflita abertamente com a segurança jurídica, a previsibilidade e a igualdade.
Sobre a não consideração do precedente, quando realizada sem justificação clara, leciona
[...] vai de encontro aos valores que inspiraram a valorização das decisões judiciais, dentre eles a segurança jurídica, a confiança e a isonomia, valores estes que o legislador colocou como parâmetros para a fundamentação da decisão que supera o precedente judicial. A fundamentação adequada tem o condão de assegurar racionalidade e reduzir a discricionariedade judicial, bem como o decisionismo indesejado.
E a falta de observância dos precedentes, muitas vezes, não se dá por meio do uso da técnica da distinção entre o caso paradigmático e a questão de direito em julgamento, mas através de pronunciamentos que ignoram qualquer justificação quanto à falta de fidelidade à
Diante da premissa de que os precedentes são normas jurídicas dotadas de generalidade, a partir de razões de Direito, necessárias e suficientes, vertidas em conformidade com o quadro fático, são eles que devem prevalecer, independentemente da opinião do julgador do caso concreto, salvo se houver distinção ou competência para superação.
O entendimento de Hans Kelsen, quando se aplica à ideia de precedente, é compartilhado por
A falta de respeito aos precedentes não configura uma atitude isolada, vista somente em julgados monocráticos. É possível identificar a prática em julgamentos colegiados, como foi o caso do agravo regimental em
A Lei nº 13.964/2019 promoveu profundas alterações no CPP, deixando expresso que “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (art. 3º-A)
Doutrinariamente, tem-se que “a essência do modelo acusatório é a nítida separação entre as funções de acusar, julgar e defender. Eliminada a divisão de tarefas, o acusado deixa de ser um sujeito processual com direito de defesa e se converte em objeto do processo” (
A prática forense anterior à Lei nº 13.964/2019 indicava uma postura judicial ativa no campo da imposição de medidas cautelares processuais penais, especialmente a custódia preventiva, sendo absolutamente corriqueira a decretação de prisão sem pedido do órgão ministerial. Essa mudança gerou (e ainda gera) uma profunda resistência por parte dos julgadores, por diversas razões, entre as quais uma suposta ideia de perda de “poder” de ordenar e dirigir o processo ou mesmo uma expectativa de menor proteção social, como se o juiz fizesse parte do aparato de segurança pública e tivesse “perdido” a capacidade de contribuir para a redução da criminalidade. Razões de ordem subjetiva e preconcepções, muitas vezes enviesadas, contribuíram e contribuem para a dificuldade de implementação das inovações legislativas. Tanto é assim que o tema chegou ao STJ e ao STF diante das inúmeras decisões que impuseram prisões preventivas de ofício, em que pese a clarividência dos textos normativos.
A seguir, é mostrado como o STF, em julgamento de turma (HC 188.209/MG), interpretou a alteração legislativa sobre a (im)possibilidade de se ter a decretação da prisão preventiva de ofício. Na sequência, a partir daquela decisão, o STJ, pela Terceira Seção, seguiu a orientação da Corte Suprema, conferindo coerência ao sistema, ao apreciar o Recurso Ordinário em
Entretanto, em que pesem as referidas decisões, a Quinta Turma do mesmo STJ, posteriormente e em interpretação criativa, como diz
O argumento adotado pela Quinta Turma foi o de que o posterior requerimento ministerial para a decretação da prisão excepcional supriria a atuação judicial de ofício, em clara contradição com texto legal, que exige prévio requerimento dos legitimados ao pedido, e também em desacordo com a decisão do STF, no citado
Em 6 de outubro de 2020, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o
O julgado do
É de se notar que as disposições do Código de Processo Penal que vedaram a atuação judicial de ofício em tema de privação da liberdade passaram a vigorar no final de janeiro de 2020 (art. 20 da Lei nº 13.964/2019), e que a decisão do STF no
Em um sistema que respeita (ou deveria respeitar) os pronunciamentos vinculantes, por questões de segurança jurídica, liberdade e igualdade, seria impensável que se tivesse de redecidir a mesma questão diversas vezes até que o tema novamente chegasse a um tribunal superior. Mas foi o que aconteceu (e ainda acontece), o que indica uma injustificada e profunda resistência judicial ao modelo de precedentes.
O fato é que, após a decisão do STF em 6 de outubro de 2020, a controvérsia continuou a movimentar as instâncias jurisdicionais com pronunciamentos conflitantes, em que pese a clareza da justificação da STF por sua Segunda Turma, que fixou a tese da impossibilidade da decretação da prisão preventiva de ofício.
As decisões divergentes também eram vistas no STJ. As Turmas de Direito Penal (5ª e 6ª) adotavam posições não coincidentes, para autorizar ou não a imposição da cautelar extrema de ofício. Como forma de “pacificar” a questão no âmbito do STJ (mesmo com anterior decisão do STF), a matéria foi submetida ao quórum qualificado da Terceira Seção, que engloba as duas turmas de direito penal, por meio do Recurso Ordinário em
De acordo com a doutrina de
A expectativa de observância da
Quando o assunto voltou a ser julgado pela 5ª Turma, em 18 de maio de 2021, nos autos do Agravo Regimental no
O agravante teve sua prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz, com posterior requerimento de prisão preventiva formulado pelo Ministério Público, quando do oferecimento da denúncia. O relator julgou monocraticamente a ordem de
Colhe-se da fundamentação do julgado unipessoal que o posterior requerimento ministerial supriria o vício inicial, “evidenciando-se a higidez do feito, de modo que não se configura nenhuma nulidade passível de correção, observado, pois, o devido processo legal”. Insatisfeita, a parte manejou o agravo regimental, requerendo expressamente a aplicação do precedente firmado no Recurso Ordinário em
Há de se ponderar que o princípio da instrumentalidade das formas diz respeito ao atingimento de uma finalidade por meios que não são os previstos na legislação, mas que atingem o objetivo perseguido pelo agente. É o privilégio do conteúdo em detrimento da forma. É bastante questionável aduzir que a supressão de um direito fundamental possa se dar sem a estrita observância das regras processuais. Também não parece válida a motivação de que não há prejuízo em prisão preventiva decretada de ofício. A prisão em si é o maior prejuízo imposto ao réu no processo penal. É claro o perfil utilitarista do raciocínio de que não adiantaria conceder a liberdade se de imediato pode haver prisão pelo mesmo fato. Finalmente, em relação ao respeito ao precedente, não houve nenhum ônus argumentativo para afastá-lo, uma fundamentação que apontasse uma distinção. Simplesmente houve o silêncio quanto a ele. E denegada foi a ordem, depois de improvido o recurso, por unanimidade, mesmo tendo ficado nas razões do precedente expresso que o pedido prévio dos legitimados é condição para a custódia cautelar.
Não bastasse o descumprimento do precedente pelo relator, causa mais perplexidade que todos os demais pares o tenham seguido, mesmo que tenham concorrido para formar a maioria em sentido contrário no julgamento do Recurso Ordinário em
Então, é possível dizer que o desrespeito ao precedente foi coletivo, pois não houve voz que levantasse para aplicar as razões necessárias e suficientes em sentido contrário e conceder a ordem. Nesse quadro, não se sabe o que é mais preocupante: a falta de submissão do relator ao precedente vinculante ou a falta de defesa dos pares que concorreram para formá-lo. O que é certo é que ele não foi aplicado, violando as justas expectativas do jurisdicionado, que expressamente postulou a aplicação, em nome da segurança jurídica, da igualdade e da liberdade.
No Estado Constitucional de Direito, o papel do Poder Judiciário está diretamente ligado à preservação dos direitos fundamentais e do regime democrático, o que há de se dar dentro dos limites impostos pelo legislador. As alterações no CPP, decorrentes da Lei nº 13.964/2019, explicitam a estrutura acusatória do processo penal nacional, de forma que qualquer medida cautelar em desfavor do investigado/réu não pode ser adotada pelo julgador sem a prévia representação ou requerimento. E há clareza suficiente nas atuais disposições dos arts. 282, § 2º, e 311 do CPP, diante da exclusão da expressão “de ofício”.
A opção legislativa foi de conformar a atuação do juiz à atuação dos legitimados para o pedido de medidas gravosas em face do sujeito passivo da persecução penal, e o fez em nome do devido processo legal, cuja clareza das regras é fator de segurança contra atos arbitrários do Estado. A interpretação que suplanta o prévio requerimento e não verifica nulidade na ação judicial de ofício, posteriormente secundada pela representação ou requerimento, afasta-se do móvel da reforma, que, repita-se, teve por escopo delimitar, de forma clara, a atuação de cada sujeito processual no processo penal.
Essa postura interpretativa, que desconsidera a teleologia da norma e cria regras não previstas nos lindes impostos pela lei regularmente aprovada, parece configurar um ativismo judicial, diante da “[…] recusa dos tribunais de se manterem dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício do poder a eles atribuídos pela Constituição” (
em um primeiro momento, que quanto mais os juízes se atenham ao significado literal do texto normativo, menos ativistas serão; ao contrário, quanto mais livres considerem-se para interpretar o texto normativo, trazendo-lhes significados novos e até argumentos extrajurídicos e desvinculá-lo da letra da lei, mais ativistas serão.
Ora, é uma garantia constitucional a previsão de que a prisão ilegal será imediatamente relaxada. Essa legalidade decorre do processo penal, que traça as regras para se terem os requisitos da custódia corporal, cuja interpretação há de ser restritiva, dado limitar o direito fundamental à liberdade. Dizer que o pedido posterior suplanta qualquer nulidade é elastecer os requisitos da prisão contra a legislação, não encontrando base no sistema acusatório. E nem se diga que se cuida de um caso difícil, a abrir margem para o exercício amplo de discricionariedade. As regras que disciplinam os requisitos para a prisão preventiva não são normas dúbias, vagas ou imprecisas. Todavia, mesmo com toda a clareza das disposições trazidas pelo Pacote Anticrime, as quais reforçam a adoção do sistema acusatório, não são poucas as decisões judiciais contraditórias sobre o mesmo tema, como, por exemplo, a aplicação judicial de medidas cautelares de modo diverso do requerido pelos legitimados.
É necessária a adoção de uma postura garantista em defesa dos direitos fundamentais e em prestígio à separação de poderes, de modo que a interpretação e a aplicação do direito sejam racionais, coerentes e devidamente justificadas, sob pena de recair em indevido voluntarismo, que “implica um grau de subjetivismo, conduzindo a um acentuado decisionismo. [...] a solução do caso apresentado a julgamento representaria uma verdadeira
A decisão proferida pela 5ª Turma do STJ no
A discussão sobre a separação de Poderes e o papel do Poder Judiciário enquanto protagonista de decisões que caberiam ao Executivo e ao Legislativo têm ganhado ainda mais destaque à medida que o processo decisório e a forma como as deliberações são tomadas não são compreendidos pela sociedade.
O dever de fundamentação (justificação) das decisões pressupõe o manejo dos métodos interpretativos trazidos pela hermenêutica e a adoção de argumentação racional, conforme o Direito, elementos capazes de serem sopesados para o fim de reduzir os subjetivismos do julgador. É fora de qualquer dúvida que a tomada de decisão é influenciada por pré-compreensões, mas estas precisam ser controladas como forma de conter arbitrariedades no preenchimento das margens indeterminadas do texto da norma, sob pena de decisionismos que concorrem para a instabilidade da ordem jurídica.
Dentro dessa mesma perspectiva, a formação e o respeito às razões necessárias e suficientes para a solução de certa questão jurídica, por meio do sistema de precedentes, são condições para o cumprimento do dever de dar à sociedade segurança jurídica, através da estabilidade e previsibilidade. Quando esse dever é ignorado, todo o sistema entra em descrédito, que é tanto maior quanto mais graduada a jurisdição, pois, à medida que se eleva o nível de hierarquia decisória, na mesma proporção aumentam-se as expectativas de respeito ao Direito.
A interpretação e a aplicação do Direito possuem inevitável margem de discricionariedade, por mais claras que sejam as disposições legislativas, diante da impossibilidade de uma correlação absoluta entre a previsão do texto e a realidade. Muitas vezes, essa incompatibilidade é intencional, de modo que o legislador optou por não disciplinar todas as consequências jurídicas; em outras, de fato, há lacunas decorrentes de falta de previsibilidade, o que põe em xeque o mito do legislador racional.
Seja como for, a discricionariedade é um elemento presente, todavia não ilimitado, pelo menos do ponto de vista dogmático. A ressalva é feita porque, na prática judiciária, muitas vezes, são encontradas decisões que desbordam desse entendimento. O ativismo judicial está ligado à ideia de um decisor que não respeita os limites da legislação, democraticamente estabelecidos na atividade legislativa, desconsiderando as balizas hermenêuticas no processo interpretativo, “criando” um Direito totalmente desvinculado do sentido da produção do parlamento.
E essa postura tem sido cada vez mais comum, e por múltiplas razões, entre elas pelo déficit da atuação dos demais Poderes ou mesmo pela resistência em obedecer a precedentes, por meio de decisões indevidamente justificadas – ou não justificadas, incoerentes e sem integridade, no sentido previsto na legislação processual.
Tal parece ter ocorrido no STJ, desconsiderando a teleologia das alterações do CPP, cuja finalidade foi de reforçar o sistema acusatório, bem como não atentando para precedentes do próprio Tribunal e, sobretudo, do STF. O desrespeito aos parâmetros hermenêuticos e aos precedentes do próprio Tribunal da Cidadania e do Supremo Tribunal Federal representa grave transgressão do dever de coerência e integridade na interpretação e aplicação do Direito. Por isso, torna-se cada vez mais premente a necessidade de uma teoria da decisão judicial que estabeleça limites para o controle da atividade jurisdicional na interpretação e aplicação do Direito, especialmente nos casos de ativismo judicial.
“Recurso extraordinário. Criança de até seis anos de idade. Atendimento em creche e em pré-escola. Educação infantil. Direito assegurado pelo próprio texto constitucional (CF, art. 208, IV). Compreensão global do direito constitucional à educação. Dever jurídico cuja execução se impõe ao Poder Público, notadamente ao município (CF, art. 211, § 2º). Recurso improvido. A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das ‘crianças de zero a seis anos de idade’ (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. [...] Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à ‘reserva do possível’. Doutrina.” (
Sobre o assunto, cf. FERRAJOLI, L. Constitucionalismo garantista e constitucionalismo principialista.
A par de reforçar o sistema acusatório, na redação do art. 3º-A do CPP, a Lei nº 13.964/2019 inseriu a figura do Juiz de Garantias, “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário” (arts. 3º-B a 3º-F). O Supremo Tribunal Federal, contudo, suspendeu a eficácia dos arts. 3º-A a 3º-F do CPP, em medida liminar concedida na ADIn 6298/DF, ainda sem julgamento de mérito.
A Terceira Seção do STJ é a responsável pela uniformização do entendimento das Turmas que apreciam matéria penal naquele Tribunal.