Chamada de Artigos para o Dossiê Temático "Terra e propriedade: o público e o privado na experiência jurídica brasileira da Colônia à República "

2023-10-06

Chamada de Artigos para o Dossiê Temático "Terra e propriedade: o público e o privado na experiência jurídica brasileira da Colônia à República"

 

As questões da terra e da propriedade tradicionalmente se consideraram a partir de uma distinção entre direito público e direito privado. É compreensível, dado que os juristas costumam partir da história do ius publicum e o ius privatum do Direito Romano, ainda assumindo que esse passou por diversas transformações ao longo da experiência jurídica ocidental. Esta construção conceitual se consolida somente em meados do século XIX, após a formação do Estado Moderno e a burocratização do aparato administrativo. Por um lado, o direito público se consolida como uma categoria autônoma, capaz de organizar as diversas normas que dizem respeito ao funcionamento do Estado. Do lado oposto, tem-se as normas que dizem respeito ao indivíduo sujeito de direitos. E, assim, a relação entre público e privado - Estado e indivíduo - adquire contornos antagônicos, formando a grande dicotomia que irá orientar a mentalidade jurídica até, pelo menos, meados do século XX.

Este dossiê propõe repensar o problema da terra e da propriedade superando a dicotomia público/privado no direito. Durante o Antigo Regime, essas categorias estavam subordinadas a outras diversas fontes do direito – como o ius naturale, ius civile, ius canonicum, ius commune, ius gentium, ius proprium, e a oeconomia da ordem familiar – que organizavam diferentes aspectos da relação entre pessoas e terras para além do direito público e/ou privado. Em contextos mais recentes, as formas de ocupação da terra também foram reguladas não só pelo direito privado, mas também pelo direito administrativo. Pensa-se, por exemplo, na permanente aspiração do Estado à titularidade de terras devolutas ou baldios, na regulação relativa às terras de marinha e de preservação ambiental, nas especialidades jurídicas das terras de aldeamentos indígenas ou no debate atual sobre uma suposta constitucionalização do direito de propriedade. Ainda que seja uma premissa assumida historicamente pelos juristas, talvez seja o momento de pensar a problemática terra/propriedade para além da dicotomia direito público-direito privado, o que permitiria entender melhor as dinâmicas jurídicas de ocupação da terra. Tanto para o passado como para o presente, ao observar em pequena escala as dinâmicas de ocupação, permanência, legitimação ou uso da terra, acabaremos desembocando numa pergunta central: qual era a dimensão pública do direito privado de propriedade?

Objetivos e enfoques pretendidos

Este dossiê propõe repensar o problema da terra e da propriedade superando a dicotomia público/privado no direito. Alguns trabalhos recentes de diferentes áreas do conhecimento vêm enfatizando a inadequação desta dicotomia para a compreensão do direito, inclusive do direito de propriedade, apesar de ser entendido como basilar no direito privado moderno. 

A apreciação dessa insuficiência muitas vezes é resultado de enfoques distintos daqueles estritamente jurídicos. A antropologia e a sociologia, por exemplo, vêm mostrando como a relação com a terra e o território são questões que interconectam indivíduos, comunidade, Estado e outras diversas formas de organização social. Essa interligação é, ao mesmo tempo que complexa, dificilmente compartimentável em categorias tão opostas como público/privado. 

Nesta proposta serão aceitos trabalhos que procurem entender as relações com a terra e o território na história do Brasil a partir das práticas específicas dessas relações. Isso implica renunciar à ideia generalizada de que “terras” seria um termo que se refere à esfera do direito privado, enquanto que “território” faria parte de uma dimensão estatal, e como tal pública, dos espaços. Pelo contrário, convidamos a uma compreensão dessas realidades que, partindo das práticas cotidianas como formas de conectar indivíduos e comunidade, encontre novas formas de criar, modificar e/ou consolidar o direito. Por esta razão, têm especial interesse as pesquisas de história, antropologia e sociologia do direito, assim como pesquisas de outras áreas do conhecimento interessadas em questionar a dicotomia público/privado a partir do estudo das relações com a terra e o território. 

 

Subtemas

1) Recursos naturais e direito de propriedade: concepções e conflitos

2) Regime jurídico das terras indígenas na história do Brasil

3) Configuração urbana, direito à cidade e propriedade privada

4) Direitos subjetivos versus direito de propriedade

 

Referências bibliográficas

Amoroso, M. (2014). Terra de Índio: Imagens em aldeamentos do Império. Terceiro Nome.

Gomes da Cunha, O. M. (2021). Clay and earth: Excavating partialities and relations. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 11(1), 174-190. https://doi.org/10.1086/713388 

Lariguet, G. (2014). ¿Dicotomía derecho público y privado? ¿O una alfombra que cubre muchas cuestiones conceptuales distintas? Principia Iuris, 22(22).

Machado, M. M., & Alveal, C. (2020). História das Propriedades e Direitos de Acesso. Revista Maracanan, 23, 7-11. https://doi.org/10.12957/revmar.2020.47618 

Paes, M. A. D. (2021). Esclavos y tierras entre posesión y títulos: La construcción social del derecho de propiedad en Brasil (siglo XIX). Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory. http://dx.doi.org/10.12946/gplh17 

Pottage, A. (1994). The measure of land. Mod. L. Rev., 57, 361.

Rodotà, S. (2013). Il terribile diritto: Studi sulla proprietà privata e i beni comuni (3a edizione aumentata). il Mulino.

Silva, L. O. (1996). Terras devolutas e latifúndio: Efeitos da lei de 1850. Editora da Unicamp.

Sordi, B.; Zoppini, A. (2020). Diritto pubblico e diritto privato. Una genealogia storica. Bologna: Il Mulino.

Tonucci Filho, J. B. (2021). Entre o privado, o público e o comum: Repensando os direitos de propriedade da terra. Revista Direito e Práxis.

 

 Serão aceitos artigos redigidos em inglês, português, italiano, espanhol e francês.

Prazo de Submissão: 06 de outubro de 2023 até 15 de janeiro de 2024.

 

Organizador(a) do Dossiê Temático:

Prof. Dr. Manuel Bastias Saavedra

Associate Professor for History of Latin America, Leibniz Universität Hannover

 

Dra. Camilla de Freitas Macedo

Postdoc Researcher at the Research Group IberLAND

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Call for Thematic Dossier: "Land and property: the public and the private in the Brazilian legal experience from the Colony to the Republic"

Land and property issues have traditionally been considered on the basis of a distinction between public and private law. This is understandable, given that jurists usually start from the history of ius publicum and ius privatum in Roman Law, even assuming that the latter has undergone various transformations throughout Western legal experience. This conceptual construction was only consolidated in the mid-19th century, after the formation of the modern state and the bureaucratisation of the administrative apparatus. On the one hand, public law is consolidated as an autonomous category, capable of organising the various rules that concern the functioning of the state. On the opposite side are the rules that concern the individual subject of rights. And so the relationship between public and private - state and individual - takes on antagonistic contours, forming the great dichotomy that will guide the legal mentality until at least the mid-20th century.

This dossier proposes rethinking the problem of land and property by overcoming the public/private dichotomy in law. During the Ancien Régime, these categories were subordinated to other diverse sources of law - such as ius naturale, ius civile, ius canonicum, ius commune, ius gentium, ius proprium, and the oeconomy of the family order - which organised different aspects of the relationship between people and land beyond public and/or private law. In more recent contexts, forms of land occupation have also been regulated not only by private law, but also by administrative law. Think, for example, of the state's permanent aspiration to own vacant or wasteland, the regulation of marine and environmental preservation lands, the legal specialities of indigenous village lands or the current debate on the supposed constitutionalisation of property rights. Although this is a premise historically assumed by jurists, perhaps it is time to think about the land/property problem beyond the public-private law dichotomy, which would allow us to better understand the legal dynamics of land occupation. Both in the past and the present, when we look at the dynamics of land occupation, permanence, legitimisation or use on a small scale, we end up with a central question: what was the public dimension of the private right to property?

 

Objectives and intended approaches

This dossier proposes rethinking the problem of land and property, overcoming the public/private dichotomy in law. Some recent works from different areas of knowledge have emphasised the inadequacy of this dichotomy for understanding law, including the right to property, despite the fact that it is understood to be the basis of modern private law.
The appreciation of this inadequacy is often the result of approaches other than strictly legal ones. Anthropology and sociology, for example, have shown how the relationship with land and territory are issues that interconnect individuals, communities, the state and other various forms of social organisation. This interconnection is both complex and difficult to compartmentalise into categories as opposed as public/private.

This proposal will accept papers that seek to understand relations with land and territory in Brazilian history from the specific practices of these relations. This implies renouncing the generalised idea that "land" is a term that refers to the sphere of private law, while "territory" is part of the state and, as such, public dimension of spaces. On the contrary, we invite an understanding of these realities that, starting from everyday practices as ways of connecting individuals and communities, finds new ways of creating, modifying and/or consolidating law. For this reason, research into the history, anthropology and sociology of law is of particular interest, as is research into other areas of knowledge interested in questioning the public/private dichotomy through the study of relations with land and territory.

Sub-themes

1) Natural resources and property rights: conceptions and conflicts

2) Legal regime of indigenous lands in Brazilian history

3) Urban configuration, the right to the city and private property

4) Subjective rights versus property rights

Bibliographical references

Amoroso, M. (2014). Terra de Índio: Imagens em aldeamentos do Império. Terceiro Nome.

Gomes da Cunha, O. M. (2021). Clay and earth: Excavating partialities and relations. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 11(1), 174-190. https://doi.org/10.1086/713388 

Lariguet, G. (2014). ¿Dicotomía derecho público y privado? ¿O una alfombra que cubre muchas cuestiones conceptuales distintas? Principia Iuris, 22(22).

Machado, M. M., & Alveal, C. (2020). História das Propriedades e Direitos de Acesso. Revista Maracanan, 23, 7-11. https://doi.org/10.12957/revmar.2020.47618 

Paes, M. A. D. (2021). Esclavos y tierras entre posesión y títulos: La construcción social del derecho de propiedad en Brasil (siglo XIX). Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory. http://dx.doi.org/10.12946/gplh17 

Pottage, A. (1994). The measure of land. Mod. L. Rev., 57, 361.

Rodotà, S. (2013). Il terribile diritto: Studi sulla proprietà privata e i beni comuni (3a edizione aumentata). il Mulino.

Silva, L. O. (1996). Terras devolutas e latifúndio: Efeitos da lei de 1850. Editora da Unicamp.

Sordi, B.; Zoppini, A. (2020). Diritto pubblico e diritto privato. Una genealogia storica. Bologna: Il Mulino.

Tonucci Filho, J. B. (2021). Entre o privado, o público e o comum: Repensando os direitos de propriedade da terra. Revista Direito e Práxis.