AS DUAS GRANDES CRISES DO CONSTITUCIONALISMO DIANTE DA GLOBALIZAÇÃO NO SÉCULO XXI

Autores

  • Francisco Balaguer Callejón Universidade de Granada - Espanha

Palavras-chave:

constitucionalismo, integração supranacional europeia, poder estatal, poder dos agentes globais, constitucionalismo marginal

Resumo

A crescente permeabilidade do Estado aos agentes globais que atuam no plano financeiro e comunicativo, determinou as duas grandes crises do constitucionalismo frente a globalização neste século XXI. Poderíamos afirmar que ambas são crises democráticas no que tange ao seu resultado final, porque ambas dão lugar a processos de involução democrática. Porém, enquanto uma delas gerou uma involução democrática “externa” no sentido de que se produz externamente em relação aos processos políticos estatais, mediante a imposição de condições econômicas limitadoras da capacidade de ação do Estado, a outra gerou uma involução democrática “interna” porque afeta o próprio núcleo dos processos políticos estatais, mediante a interferência em processos eleitorais e no debate público em geral de grandes plataformas que gerenciam redes sociais e que almejam determinar os resultados destes processos por meio da manipulação propagandística massiva.
Por um lado, cronologicamente, a primeira foi a crise financeira, que deu lugar a uma exteriorização do poder estatal, submetido a condições econômicas ditadas de fora. Sob
o pretexto da crise, tentou-se implantar uma “interpretação econômica da Constituição” (Balaguer, 2012b) que debilitou os valores inspiradores do constitucionalismo, afetando em grande medida a legitimidade das constituições nacionais. A economia tentou



usurpar o espaço não só da política, como também o da própria Constituição, marginalizando-a e convertendo-lhe numa instituição residual no espaço público, perdendo em grande medida sua força normativa, seu caráter pluralista e sua condição de fator regulador da dinâmica social (Balaguer, 2013b)
Por outro lado, a crise mais recente foi a de caráter democrático, interna, e gerada pelas redes sociais, que se manifestou a partir do referendo sobre o Brexit e das últimas eleições presidências dos Estados Unidos, com a incidência que tiveram as grandes agências provedoras se serviços de internet sobre os processos eleitorais, mediante o desenho tecnológico de propaganda massiva adaptada às redes sociais. A involução democrática gerada por ocasião da crise financeira é muito grave porque altera as condições estruturais básicas do constitucionalismo europeu (direitos fundamentais, direitos sociais, descentralização política, normatividade da Constituição, divisão de poderes na relação entre Executivo e Legislativo). Porém, a involução democrática interna é ainda mais grave por afetar os processos políticos de formação da vontade estatal internalizando o poder dos grandes agentes globais.
Deste ponto de vista, ambas as crises geraram, de maneira complementar, uma debilidade cada vez maior na democracia pluralista. Por um lado, a financeira reduz o pluralismo ao obrigar o Estado, qualquer que seja a orientação política de seus governantes – isto é, seja o que for que pensem em relação a forma de se produzir a ação estatal – a realizar as políticas impostas do exterior (em última instância condicionadas pelos especuladores financeiros). Por seu turno, a crise comunicativa é ainda mais problemática, por que não se limita a condicionar o Estado de fora, pretendendo, ao contrário, subverter os processos democráticos de formação da vontade estatal para determinar de dentro de tais processos a vontade dos governantes. Não se trata de dizer aos representantes democráticos o que devem fazer em virtude das exigências econômicas externas, embora pensem de maneira diferente, e sim de definir diretamente o que devem pensar para poder converter-se em opções de governo, através da manipulação propagandística de seus votantes.
Lamentavelmente, com isto não acabam os problemas gerados pelas duas grandes crises do capitalismo de nosso tempo. Para além dos efeitos visíveis da intervenção destes novos poderes globais, estão surgindo problemas estruturais que podem afetar a própria essência do constitucionalismo em sua última fase de desenvolvimento até o momento, aquela representada pelas constituições normativas e pela democracia pluralista. No plano econômico, estão sendo minadas as bases do Estado social e deterioradas suas raízes culturais. No plano comunicativo, apesar da potencialidade participativa das redes sociais, está se produzindo um crescente isolamento e encapsulamento da coletividade em grupos e uma mudança de padrões de conduta nos partidos políticos e nos meios de comunicação, que dificultam cada vez mais os processos comunicativos reflexivos, orientados à formação de consensos, que eram típicos da democracia pluralista.
A segmentação e desagregação progressiva do espaço público se veem potencializadas extraordinariamente pelas redes sociais, já que se apresentam como economicamente

produtivas para as grandes plataformas eletrônicas. O advento da instabilidade política e dos conflitos sociais virtuais através das redes incrementa os recursos publicitários percebidos. A lógica economicista instalada nos grandes agentes globais está provocando um retrocesso civilizatório e uma crise existencial do constitucionalismo como o conhecemos.
Estamos assistindo uma transformação dos padrões culturais que haviam regido a vida pública das sociedades democrática no constitucionalismo moderno, e também uma mudança de paradigma. Esta mudança de paradigma não pode ser divisada com precisão ainda devido às dinâmicas tão aceleradas geradas nesta temática, que periodicamente fazem com que surja alguma novidade em relação às linhas significativas de transformação na utilização das redes sociais com finalidades diversas embora geralmente vinculadas ao benefício econômico das plataformas ou os agentes globais que as utilizam. Este ritmo dificulta muito a análise científica, porquanto torna- se impossível conhecer previamente os efeitos que tais transformações terão em médio e longo prazo. A reflexão teórica tem que extrair destas incipientes linhas as tendências que possivelmente incidirão no espaço público, na configuração democrática dos países analisados e em seus processos constitucionais.
Como tentaremos argumentar neste trabalho, a ação combinada de uma pressão econômica de base derivada da globalização, evidenciada de maneira inequívoca com a crise financeira desde 2008, d de uma crescente intervenção das plataformas que gerenciam redes sociais nos processos políticos (evidente especialmente a partir de 2016, quando teve seu “ensaio geral no referendo sobre o Brexit) está provocando uma transformação das condições materiais e das pauta culturais do constitucionalismo e dando lugar a uma mudança de paradigma. Caso esta mudança se consolide, estaríamos ante um constitucionalismo isolado, residual, que não poderia cumprir as funções históricas que lhe caracterizam. Um constitucionalismo sem legitimidade diante das demandas históricas e tecnológicas de nosso tempo, tendente a permanecer marginalizado em relação aos processos políticos reais, e que seria incapaz de controlar os autênticos poderes de nossa época e de garantir os direitos fundamentais diante destes poderes.
Isto acontece justamente quando o constitucionalismo havia logrado controlar o essencial no poder do Estado através de mecanismos políticos e jurídicos de cobrança de responsabilidade estabelecidos nas constituições normativas. O motivo fundamental consiste no fato deste poder, antes exercido no seio do Estado nacional, ter se desvinculado cada vez mais do Estado, sendo exercido agora por instâncias globais. Portanto, o constitucionalismo tem que esboçar novas estratégias que possibilitem a recuperação das funções históricas que lhe caracterizaram como movimento civilizatório, para controlar o poder aonde este se encontra atualmente, em grande medida fora do Estado e dos circuitos internos de formação da vontade estatal.

Downloads

Não há dados estatísticos.

Biografia do Autor

Francisco Balaguer Callejón, Universidade de Granada - Espanha

Catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Granada, Catedrático Jean Monnet ad personam de Direito Constitucional Europeu e Globalização

Referências

CALLEJÓN, Francisco Balaguer. Diritto e giustizia nell’ordinamento costituzionale europeo. In: CANTARO, Antonio. Giustizia e diritto nella scienza giuridica contemporânea. Torino: G. Giappichelli Editora , pp. 31-49, 2011.

. El final de una época dorada: Una reflexión sobre la crisis económica y el declive del Derecho constitucional nacional. In: CORREIA, Fernando Alves (coord.). Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. II, Constituição e Estado: entre Teoria e Dogmática, Coimbra: Coimbra Editora, p. 99-122, 2012a.

. Crisi economica e crisi costituzionale in Europa. KorEuropa. Enna, n. 1, 2012b. Disponível em:

<https://www.unikore.it/media/k2/attachments/Francisco_Balaguer_Callejon_numerato. pdf>.

. Crisis económica y crisis constitucional en Europa, Rev. Española de Derecho Constitucional, n. 98, p. 91-107, Mai/Ago 2013a. Disponível em:

<https://recyt.fecyt.es/index.php/REDCons/article/view/39779/22466>.

. Una interpretación constitucional de la crisis económica. Rev. de Derecho Constitucional Europeo. n. 19, 2013b. Disponível em:

<https://www.ugr.es/~redce/REDCE19/articulos/15_F_BALAGUER.htm>.

. European Identity, Citizenship and the Model of Integration. In: SILVEIRA, Alessandra; CANOTILHO, Mariana; FROUFE, Pedro Madeira (Eds.). Citizenship and Solidarity in the European Union - from the Charter of

Fundamental Rights to the crisis, the state of the art. Bruxelas: PIE - Peter Lang, 2013c.

. Profili metodologici del Diritto Costituzionale europeo. La cittadinanza europea, n. 1, p. 39-62, 2015a.

. Constitución y Estado en el contexto de la integración supranacional y de la globalización. In: CARBONELL, Miguel; FIX-FIERRO, Héctor; PÉREZ, Luis Raúl González; VALADÉS, Diego (Coords.), Estado constitucional, Derechos humanos, Justicia y vida universitaria. Estudios en Homenaje a Jorge Carpizo. Tomo IV, Vol. 1. México: UNAM, p. 197-211, 2015b.

. European Integration and Limitation of the Power of Constitutional Reform. In: ARNOLD, Rainer (Ed.) Limitations of National Sovereignty through European Integration. Springer, p. 15-25, 2016.

. Potere costituente e limiti alla revisione costituzionale visti dalla Spagna. In: LANCHESTER, Fulco (Org.). Costantino Mortati. Potere costituente e limiti alla revisione costituzionale. Padova: Cedam, p. 85-112, 2017a.

. Primato del diritto europeo e identità costituzionale nell’esperienza spagnola. In: BERNARDI, Alessandro. I Controlimiti - Primato delle norme europee e difesa dei principi costituzionali. Nápoles: Jovene Editore, p. 113-133, 2017b.

. A relação dialética entre identidade constitucional nacional e europeia, no quadro do Direito Constitucional Europeu. UNIO - EU Law Journal. v. 3, n. 1, p. 10- 24, 2017c. Disponível em:

<http://www.unio.cedu.direito.uminho.pt/Uploads/UNIO%203/Corrigidos/francisco_bal aguer_callejon.pdf>.

. Constitutional Courts under Pressure: New Challenges to Constitutional Adjudication. The Case of Spain. In: SZENTE, Zoltán; GÁRDOS-OROSZ, Fruzsina (Eds.). New Challenges to Constitutional Adjudication in Europe. A Comparative Perspective. Londres e Nova York: Routledge Editora, p. 164-184, 2018a.

. La prospettiva spagnola sul pilastro sociale europeo. No prelo. Milão, 2018b.

. Alcune lezioni della Brexit per il Diritto costituzionale europeo. Referendum e Social Network versus democracia pluralista. No prelo. Liber Amicorum Silvio Gambino, 2018c.

BAUMAN, Zygmunt. Liquid Times: Living in an Age of Uncertainty. Cambridge, Polity Press, 2007.

D’ATENA, Antonio. Tensioni e sfide della democrazia. Rivista AIC, n. 1, 2018. Disponível em: <http://www.rivistaaic.it/tensioni-e-sfide-della-democrazia.html>.

DEB, Anamitra; DONOHUE, Stacy; GLAISYER, Tom. Is Social Media a Threat to Democracy?. 2017. Disponível em: <https://www.omidyargroup.com/wp- content/uploads/2017/10/Social-Media-and-Democracy-October-5-2017.pdf>.

DE CABO, Carlos. Constitucionalismo del Estado social y Unión Europea en el contexto globalizador, Revista de Derecho Constitucional Europeo, n. 11, jan/jun 2009.

FERGUSON, Niall. Social networks are creating a global crisis of democracy. The Globe and the Mail [online]. Toronto, 2018. Disponível em:

<https://www.theglobeandmail.com/opinion/niall-ferguson-social-networks-and-the- global-crisis-of-democracy/article37665172/>.

FROSINI, Tommaso Edoardo, Internet e democrazia, Il diritto dell'informazione e dell'informatica, Anno XXXII, fasc. 4-5, p. 657-671, 2017.

GAMBINO, Silvio. Crisi economica e costituzionalismo contemporâneo: Quale futuro europeo per i diritti fondamentali e per lo Stato sociale. ASTRID Rassegna [online], n. 5, 2015. Disponível em:

<http://www.europeanrights.eu/public/commenti/Gambino_Crisi-economica-e-Stato- sociale-1.pdf>.

GRASSO, Giorgio. Le parole della Costituzione e la crisi economico-finanziaria.

Osservatorio AIC [online], 2016. Disponível em:

<https://www.osservatorioaic.it/images/rivista/pdf/Giorgio%20Grasso%20Osservatorio

%20Costituzionale%20febbraio%202016.pdf l>.

GUILLÉN LÓPEZ, Enrique. La crisis económica y la dirección política: reflexiones sobre los conceptos de necesidad y de elección en la teoría constitucional, Revista de Derecho Constitucional Europeo, n. 20, Jul/Dez 2013.

HÄBERLE, Peter. Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten: Ein Beitrag zur pluralistischen und prozessualen Verfassungsinterpretation. JuristenZeitung, p 297- 305, 1975.

MANIN, Bernard. The principles of representative government, Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

NOCITO, Walter. Diritti costituzionali e crisi finanziaria: la rigidità costituzionale alla prova. Revista de Estudios Jurídicos, n. 15, 2015.

PALANO, Damiano. La bolla mortale della nuova democrazia. Il Foglio [online]. 1 Maio 2017. Disponível em: <https://www.ilfoglio.it/politica/2017/05/01/news/la-bolla- mortale-della-nuova-democrazia-132173/>.

PARISER, Eli. The Filter Bubble: What the Internet Is Hiding from You, Penguin Books, 2011.

PITRUZZELLA, Giuseppe. La libertà di informazione nell’era di Internet. In: PITRUZZELA, Giovanni; POLLICINO, Oreste; QUINTARELLI, Stefano. Parole e potere: Libertà d'espressione, hate speech e fake news. Egea: Italian Edition, 2017.

POLLICINO, Oreste. La prospettiva costituzionale sulla libertà di espressione nell’era di Internet. . In: PITRUZZELA, Giovanni; POLLICINO, Oreste; QUINTARELLI, Stefano. Parole e potere: Libertà d'espressione, hate speech e fake news. Egea: Italian Edition, 2017.

RAIMONDO, Natália Ansemino REVIGLIO, María Cecilia; DAVIANI, Ricardo. Esfera pública y redes sociales en Internet: ¿Qué es lo nuevo en Facebook?. Revista Mediterránea de Comunicación, v.7, n. 1, p. 211-229, 2016.

CANOTILHO, Mariana Rodrigues. La crisis económica (y social) de los países en crisis. Revista de Derecho Constitucional Europeo, n. 23. Jan/Jun 2015.

RUGGERI, Antonio. Il futuro dei diritti fondamentali e dell’Europa. Consulta On Line, fasc. 3, 2016. Disponível em: <http://www.giurcost.org/studi/ruggeri59.pdf>.

BARRILAO, Juan Francisco Sánchez. Derecho europeo y globalización: mitos y retos en la construcción del Derecho Constitucional Europeo, Revista de Derecho Constitucional Europeo, n. 12, Jul/Dez 2009.

BARRILAO, Juan Francisco Sánchez. El futuro jurídico de Internet: una aproximación constitucional a la neutralidad de la red. Revista de Derecho Constitucional Europeo,

n. 26, 2016. Disponível em:

<http://www.ugr.es/~redce/REDCE26/articulos/06_BARRILAO.htm>.

BARRILAO, Juan Francisco Sánchez. El Internet en la era Trump: aproximación constitucional a una nueva realidade. No prelo, 2018.

SÁNCHEZ, Miguel Arjona. La libertad de capitales en Europa: Una mirada constitucional sobre la red jurídica sobre la que se forjan y mueven los capitales en la era de la globalización. 2017. Tese, Universidade de Granada. Granada. 2017

SCHILLACI, Angelo. Crisis económica, participación y reformas de las administraciones públicas. Revista de Derecho Constitucional Europeo, ano 11, n. 22, p. 15-27, Jul/Dez 2014.

SCOTT, Mark. Cambridge Analytica helped ‘cheat’ Brexit vote and US election, Politico, 29 Março 2018. Disponível em: <https://www.politico.eu/article/cambridge- analytica-chris-wylie-brexit-trump-britain-data-protection- privacy-facebook/>.

SCHAUER, Frederick, 2010. Facts and the First Amendment. UCLA Law Review, v. 57, p. 897–919, 2010. Disponível em: <https://www.uclalawreview.org/pdf/57-4- 1.pdf>.

SUNSTEIN, Cass Robery. #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton: Princeton University Press, 2018.

VECCHIO, Fausto. Crisis económica y evolución de la Administración Pública en Europa. Revista de Derecho Constitucional Europeo, n. 23. Jan/Jun 2015.

Publicado

2019-08-20

Como Citar

Balaguer Callejón, F. (2019). AS DUAS GRANDES CRISES DO CONSTITUCIONALISMO DIANTE DA GLOBALIZAÇÃO NO SÉCULO XXI. Direito Público, 15(87). Recuperado de https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3405